INTRODUÇÃO: Em que se explica porque é que o livro foi ostracizado. Antes de ler, ir ao vídeo no fim do texto e carregar no play. Saltar para depois da primeira imagem se causar aborrecimento.
Mais um livro ostracizado: uma edição de quatro contos de Nikolai Gogol em inglês.
Por norma evito traduções. Mas como não leio nem russo nem grego (mas domino todos os outros idiomas coff coff), às vezes há que lê-las. Não há outro remédio.
Mas quando leio traduções gosto de investigar primeiro a experiência do/a tradutor/a. E nunca leio (a não ser em caso de extrema necessidade) traduções para outra língua que não o português!
E por caso de extrema necessidade entenda-se 1) não haver tradução para português; 2) ser traduzido do original para outra língua primeiro e depois para português; 3) a tradução para português não ser boa.
Ora, com estas obras do Gogol que me vieram parar cá a casa, não se verificava nenhuma das ocorrências acima descritas (gostaram deste juridiquês? Estou a redigir o meu contrato de arrendamento enquanto escrevo este texto, por isso há influências cruzadas!). Mas o raio do livro estava em inglês.
Comecei a ler os primeiros contos “Old-Fashioned Farmers” e “The Tale of How Ivan Ivanovich Quarrelled with Ivan Nikiforovich” e empanquei neste último. Lembro-me de ter dificuldades em progredir no texto e de confundir os dois Ivans.
Até que voltei a tentar e adorei. Não sei o que se passa comigo, mas este “eu” do confinamento tá a desbastar livros duma maneira surreal!

Old-Fashioned Farmers
A história de um velho casal de agricultores que vivem apenas um para o outro, enquanto são roubados escandalosamente pelos trabalhadores da sua quinta. São completamente alheios às riquezas que os rodeiam e vivem apenas para cuidar um do outro e deliciarem-se (e aos seus hóspedes) com as iguarias que a mulher, Pulcheria Ivanovna Tovstogubikha prepara.
Uma das coisas que mais enriquece este simples conto são as inúmeras referências aos produtos da quinta e às iguarias com que se deliciam:
A fire was constantly laid under the apple-tree; and the kettle or the brass pan with preserves, jelly, marmelade – made with honey, with sugar, and I know not with what else – was hardly ever removed from the tripod.
…distilling vodka with peach-leaves, with wild cherry, cherry flowers, gentian, or cherry-stones in a copper still;

What shall we have to eat now, Afanasii Ivanovich – some wheat and tallow cakes, or some pies with poppy seeds, or some salted mushrooms?
E há ainda referências a pratos ucranianos, como zakuska1, kutya2 e mnishki3. O conto é bonito mas nada de memorável.
The Tale of How Ivan Ivanovich Quarrelled with Ivan Nikiforovich
Foi neste conto que empanquei. Lembro-me de confundir os dois Ivans e de achar o conto aborrecido e desinteressante. Dez anos fastforward e a impressão foi muito diferente.
Ponto um: é bastante fácil distinguir os dois Ivans.
Ponto dois: O conto é bastante fácil de ler e há claramente um antes e um depois da quezília4 entre os dois Ivans. Antes são inseparáveis, praticamente unha e carne e um exemplo de amizade na sua Mirgorod natal. Depois da quezília, mal se podem ver à frente. Tornam-se conflituosos e a vida da cidade é para sempre afectada.
Sem contar spoilers digamos que se no conto anterior as personagens davam importância ao que realmente importa, os dois Ivans deixam que coisas insignificantes como o orgulho ou a teimosia destruam uma forte amizade.
O conto está recheado de humor. Principalmente no motivo da zanga. É uma boa forma de mostrar como, vistas de fora, há discussões ridículas e inúteis e que não vale a pena estragar uma boa amizade por causa de um ganso…!
The Nose

Ora aí está o conto que me fez gritar “GOGOL É INCRÍVEL”!
Nem de propósito este conto chegou até mim numa altura em que uma amiga minha foi operada ao….
(rufos)
…NARIZ!
O conto trata de um nariz que fugiu do seu lugar (na cara de uma pessoa, obviamente) e passeia-se agora pela cidade e, ainda para mais, vestido como um homem de estatuto superior ao do seu antigo dono!
Pensei imediatamente na minha amiga. E se o nariz dela, depois de ter sido recauchutado, quisesse fugir da cara dela? Não que houvesse nada de errado com a cara dela, obviamente. Mas simplesmente porque o nariz, já não é o mesmo nariz e já não quer viver naquela cara. Quer independência!
E se os nossos narizes quisessem dar um grito do Ipiranga? E depois? O que seria das nossas caras?
O nariz é muitas vezes ignorado. Só damos por ele ou quando pinga ou quando não funciona. Agora com o ataque do Covid ficamos todos ó tio ó tio se perdíamos o olfacto!
Eu percebi a importância do meu nariz quando vi uma amiga (que tem sinusite crónica) enfiar o dela na fralda do seu bebé para saber se estava na hora de a trocar. Bastava ter-me perguntado. A evidência era abundante e incontestável!
Gogol só veio reforçar a importância de tratarmos bem do nosso nariz. Não vá ele fartar-se e sair a correr pela cidade. E agora com máscara não se reconhece ninguém!
Não, não falei grande coisa do conto, mas se a história de um nariz que abandona uma cara não vos faz lê-lo, não sei o que fará!
The Overcoat
Um funcionário público tem um casaco a desfazer-se. Todos gozam com ele no serviço. Até que é preciso remendar o casaco mas o alfaiate diz ser impossível: é preciso fazer um casaco novo.
Akakii Akakievich faz grandes sacrifícios financeiros para conseguir pagar o casaco e finalmente consegue.
O casaco é lindo. E quente. E todos o admiram. Até que….
E vou parar por aqui.
É difícil falar do texto sem fazer spoilers!
Desde o início do conto que se tem a impressão que Akakii não é um homem de sorte. Pelo contrário. Ele parece uma pequena formiga prestes a ser esmagado quando menos esperar.
Tal como no “Nariz”, uma pequena coisa, neste caso o casaco, fazem toda a diferença. O casaco serve como símbolo de estatuto social mas também serve propósitos mais básicos (e mais importantes) como proteger do frio – o que, convenhamos, em S. Petersburgo é bastante importante!
Sem o casaco novo, a vida de Akakii é muito diferente, mas talvez não fosse tão má se os seus companheiros e chefes prestassem mais atenção a quem não tinha os seus privilégios.
Lição a retirar do conto: tratar bem toda a gente. Primeiro, por princípio. Segundo, porque traz bom karma. Porque eu não acredito em bruxas (ou fantasmas), pero que las hay las hay….!
4/5 para os dois primeiros contos e 5/5 para o Nariz e o Capote.
Fiquei com vontade de ler mais coisas de Gogol!
P.S. – Sugestão de leitura: ler a ouvir Shostakovich. Claro que a ópera “O Nariz” é a escolha óbvia, mas gostei mais de ouvir a Jazz Suite No.1:
1 zakuska: aperitivo servido antes do jantar que consiste em caviar, arenque, salmão fumado, sardinhas, ganso fumado, salsichas, pão de queijo, manteiga, vodka, etc.
2 kutya: prato servido em funerais, feito com bagos de trigo, sementes de papoila e mel. Também pode levar avelãs, frutos secos e passas. Podem ver uma kutya na série da RTP2 “257 razões para viver“.
3 mnishki: coalhada e farinha
4 quezília: descobri que vem do quimbundo kijila, «preceito» e resolvi partilhar!