Onde se fala de música, palavras e um bocadinho de religião.
Eu sou ateia. Mas houve três momentos em que estive quase a voltar para o lado de lá. E em todos, a música foi o factor decisivo.
Os dois primeiros ocorreram quando ouvi pela primeira vez o Requiem de Mozart e Carmina Burana. E ainda hoje, cada vez que os escuto, dá-me vontade de ir ouvir missa em latim1.
O terceiro foi quando fui ver o Asif Ali Khan Santoo (o príncipe do Qawaali) à Casa da Música e quase me converti ao Islão a meio do concerto.
Há qualquer coisa de hipnotizante nas duas línguas cantadas. Parece que urdem feitiços. No caso do latim deve ser porque os feitiços do Harry Potter soam todos “alatinados” (imperio, petrificus totalus, etc.). No caso do urdu não sei. A própria estrutura do canto Qawwali tem por objectivo induzir um estado hipnótico quer nos músicos quer nos espectadores. E ouvir Qawwali em urdu é incrível. (Note to self: começar a aprender urdu!).
E sem ser em latim ou urdu, EU ADORO MÚSICA.
Eu e provavelmente 99% da humanidade2. Citando a Wikipédia: “Não se conhece nenhuma civilização ou agrupamento que não possua manifestações musicais próprias”. E isto lembrou-me uma das muitas tiradas sarcásticas de Mr. Darcy em “Orgulho e Preconceito”:
Sir William thus began.
“What a charming amusement for young people this is, Mr. Darcy! – There is nothing like dancing, after all. – I consider it as one of the first refinements of polished societies.’
‘Certainly, Sir; – and it has the advantage also of being in vogue amongst the less polished societies of the world. – Every savage can dance.’
E assim, de uma forma um tanto racista, se prova a universalidade da música (e da dança).
Se há coisa capaz de redimir a humanidade é a música. Há qualquer coisa de comunhão na música, de universalidade… que é muito mais poderosa do que nas outras expressões artísticas. Só a música consegue fazer-nos chorar, rir, dançar e partilhar tudo isto com alguém que acabamos de conhecer num concerto.
Além disso, a incrível variedade de estilos musicais faz com que cada um encontre o seu cantinho. E para quem acha que há música superior e inferior sugiro que vejam o excelente discurso de Stephen Fry em Cambridge.
Eu, na música, como em muitas outras coisas, aplico a máxima Pessoana:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.”
E além do urdu e do latim, também curto canto gutural da mongólia. Se não conhecem, recomendo Khusungtun:
Para quem gosta de substâncias mais pesadas também há metal mongol: THE HU.
A minha fé musical inclui tanto Chopin como Conan Osíris (que devia ser conanizado, sim, leste bem, para ser eternizado no panteão musical mundial), Sérgio Godinho, Lady Gaga, etc., etc. etc.
Próximo da música, só as palavras me causam tanta transcendência e conforto. Talvez Beethoven tenha sentido o mesmo e, por isso, juntou as duas ao compor a Nona Sinfonia. A Nona foi a primeira sinfonia onde se utilizou “a voz humana com o mesmo destaque que a dos instrumentos“. [Nietzsche disse qualquer coisa muito interessante acerca disto no “Nascimento da Tragédia”, mas em vão tentei encontrar a passagem no livro. Talvez volte a este tópico noutro artigo].
A experiência da literatura é sempre mais pessoal. Ler um livro é um diálogo com o autor e com nós mesmos. Por mais que se partilhe e se encontre outros que partilhem a mesma fé, nunca equivale a gritar em plenos pulmões a letra de uma canção num concerto com milhares de pessoas.
ACABEI DE TER UMA IDEIA: CONCERTOS LITERÁRIOS! Um palco com alguém a coordenar e o público a ler ou recitar ao mesmo tempo um texto ou poema. Tipo missa, mas com palavras mais bonitas, menos culpa e sem pecado. Ora aí está, o meu tipo de culto!

Podíamos começar com as belas palavras de Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”:
"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. [...] Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica. Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Como Bernardo Soares, estremeço se dizem bem. E tenho gravadas na memória “palavras inevitáveis” como as primeiras de Gabo em “Cem Anos de Solidão”, palavras de Murasaki Shikibu, de Pessoa, obviamente!, de Arundhati Roy e muitos outros.
Alicercei a minha fé em canções e poemas e os meus sacerdotes são músicos e escritores. Não preciso de missa ou água benta e tenho muitos livros sagrados em casa por onde escolher.

Portanto, não tenhas medo de ser ateu. Há todo um panteão novo à tua espera.
E podes começar a rezar com esta oração em forma de poema do “Poema de canção sobre a esperança” de Álvaro de Campos:
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
E agora ide lá ouvir R.E.M. que devem tar com isso na cabeça desde o início do artigo!
1 Recentemente descobri que o líder do Chaga ia ouvir missa em latim quando era novo. Talvez a missa em latim não seja recomendável a todos. Vejam se têm antecedentes de racismo ou xenofobia, a missa em latim pode não ser para vocês!
2 Eu só conheço uma pessoa que não gosta de música e o universo vingou-se e deu-lhe dois filhos, um que toca bateria e o outro saxofone!