Onde se fala do Minho, de fidalgos, de palavras esquecidas e de outras que não devemos esquecer, como escravatura.
Primeira leitura do ano!
Finalmente! Dez anos depois acabei este livro!!! Nunca tinha passado das 10 páginas iniciais. E sim, não foi fácil. Mas há males que vêm por bem e não há melhor desculpa para pegar no dicionário que ficar fechada em casa.
O vocabulário é, sem dúvida, um dos entraves a uma leitura fácil desta obra. Aquilino Ribeiro descreve tudo com minúcia e usa tanto vocabulário erudito como mais popular. O problema é que a evolução da língua foi fatal para ambos. Palavras como zagal, laparoto, sabujo, molosso, alexifármaco, etc. há muito que não fazem parte do vocabulário português actual. E para avançar na leitura, só mesmo de dicionário ao lado!
Mas o vocabulário é também a grande riqueza deste livro. Através dele mergulhamos numa verdadeira viagem no tempo e vivemos de perto a riqueza e generosidade do Minho em todo o seu esplendor. Há belíssimas descrições dos prados:
Manadas de vacas, de úberos retesos, mugindo amaviosas quando mamãs recentes, de galhadura em lira, mais esbeltas que duas estrofes de Diogo Bernardes, vizinho das terras do Lima, davam ameneidade bíblica ao verde anojadiço das veigas. As ovelhas baliam nos rossios, e era patusco ver os poldros novos despedir em carreiras vertiginosas pelos cerros e estacar cerce como o cavalo de Fuas Roupinho nas arribas da Nazaré.

Da dieta dos abades:
Dois abades estiveram às portas da morte, fulminados de congestão. O P.e Mourinha desforrou-se nas almôndegas da dieta hídrica que aguentara no Seminário de Braga, dieta essa que contribuíra para lhe escangalhar a máquina, de colaboração com as rijas pançadas de broa rural rilhadas a paroquiar Corno de Bico.
Ao centro, estava o Cordeiro Pascal, pintado tão ao vivo que fazia crescer água na boca como se acabasse de chegar na espadela, tostadinho do forno.
Da vida das beatas:
As beatas saíram da igreja de Nossa Senhora a Branca isoladas e aos magotes, rosários ao pendurão, de nariz no ar, investigando do que teria acontecido na praça enquanto elas encomendavam a alma e o mundo a Deus Nosso Senhor.
E, por todo o livro, há um tom de humor e ironia que põe à vista as vidas menos santas dos fidalgos:

Embora de cerca, era uma porta conventual, reforçada, como todas as portas conventuais, de molde a resistir aos três inimigos temíveis: mundo, diabo e carne.
Há também interessantes divagações sobre os democráticos ataques do percevejo, tão comum no hostel hodierno como no solar de antigamente:
“É certo que os percevejos numa casa nobre, do tempo de D. Tareja, são tão infalíveis e decorativos como as adagas numa panóplia. Fazem parte da tradição. Andam ligados às vicissitudes da progénie e poderiam testemunhar dos brincos de alcova. À sua hora eles lá vêm capciosos e sorrateiros com todas as ventosas prontas a chupar o sangue visigótico. Se topam com um vilão, frigem-no. Aqueles da linhagem dos Tresmondes eram particularmente densos e carnífices. Lançaram-se sobre Luís de Azevedo por miríades, e quando se apercebeu, estava submerso, mais cravejado de assaltantes que de estrelas a Via Láctea.”
Estas pérolas por si só já formariam uma bela jóia, mas a acrescentar-lhes ainda temos as aventuras e desventuras dos fidalgos da Casa Grande, desde o licenciado Gonçalo da Cunha a Telmo Montenegro. Atravessamos a história de Portugal, desde o domínio filipino até ao fim do séc. XIX, passando pela restauração da independência, invasões francesas e guerras liberais. Observa-se a vida dos fidalgos e dos camponeses, de ladrões e abades. E lá pelo meio há menção de escravos a trabalharem nas quintas do Minho.
Admito que possa ter deixado passar referências semelhantes noutras obras de literatura portuguesa. Numa altura em que não estava tão atenta a estas questões. Mas não tenho ideia nenhuma de alguma vez ter lido sobre escravos negros a trabalharem em Portugal. A ideia com que se fica das aulas de história (e perdoem-me os meus professores se a minha memória me falha) é que a escravatura foi algo que aconteceu longe: em Angola, Moçambique, no Brasil…
Por isso soam estranhas as referências de Aquilino aos escravos que trabalham na quinta, à compra e venda de escravos pelos fidalgos como se fossem mais uma alfaia agrícola. E ao mesmo tempo faz-me perguntar “mas espera lá, como é que eu nunca li isto antes?”
Fiz uma pequena pesquisa sobre o tópico e não há muita matéria sobre o assunto. Os 40 anos de ditadura não favoreceram em nada a investigação – as poucas teses que havia serviam para negar mais do que para estudar a fundo o assunto. Creio que é mais do que altura para se investigar.

Passámos demasiado tempo a dar pouca importância ao assunto e ao nosso contributo para esse flagelo. Ou então a dizer (como se fosse desculpa) que fomos os primeiros a acabar com a escravatura – quando na realidade em 1761 acabou-se apenas com o comércio de escravos em Portugal continental e a escravatura continuou nas colónias (e também na metrópole, apesar do decreto).
E nem de propósito, o próximo livro na lista é “The Souls of Black Folk” de W. E. B. Du Bois.
Quanto à Casa Grande, recomendo muito, se tiverem tempo para lhe dedicar. Creio que se perde muito se se tentar adivinhar o significado das palavras pelo contexto (dei muitos tiros ao lado!) sem consultar o dicionário. Mas com tempo é uma viagem incrível pelo Minho de outros tempos. E há melhor nesta altura?
4/5
Significados:
- zagal = pastor
- laparoto = coelho adulto
- sabujo = cão de montaria
- molosso = cão de fila
- alexifármaco = antídoto