Ensaio sobre a curgete.

ESTE POST É O RESULTADO DE FALTA DE SOCIALIZAÇÃO CONTINUADA E PODE CAUSAR SENTIMENTOS DE ALIENAÇÃO OU ENFADO EXTREMO.

Sim, vou escrever sobre curgetes. Porque não? Estou há meses em quarentena e distanciamento social, isto começa a afectar a cabeça duma pessoa.. E têm visto as notícias ultimamente? Pra que é que hei-de falar de viagens e livros e do resto? Qual seria o objectivo?

Por isso vou falar de curgetes.

O meu interesse pelo tópico nasceu durante a última quarentena. “Interesse” talvez seja excessivo. Digamos que me deparei com a questão da existência da curgete enquanto estava fechada em casa. E isso incomodou-me.

Como quase todos os portugueses bombardeados nas redes sociais com anúncios de venda de cabazes de legumes online (bio e não bio), cedi e decidi mandar vir um cabaz de frutas e legumes.

O cabaz trazia diversos frutos e legumes e claro, uma curgete. A curgete tornou-se omnipresente na vida dos portugueses.

Enquanto era miúda nem me lembro de ouvir pronunciar o seu nome. (Também podia ser porque eu e os legumes só fizemos as pazes há cerca de 10 anos). Mas agora? Há courgettes, courgetes e curgetes em todo o lado.

O problema começa logo por ninguém saber como se escreve o raio do bicho. É com “ou”? Com dois “tt”?

O dicionário esclarece:

curgete, do francês "courgette": fruto pertencente à família das Cucurbitáceas, a que também pertencem as abóboras, de forma alongada, casca verde e polpa branca ou amarelada, que é colhido e consumido no início do seu desenvolvimento.

Mas voltemos ao cabaz. Fomos comendo tudo e a curgete ficou pro fim.

A minha inquietação com a curgete começou aqui. O que é que eu ia fazer com ela?

Lá decidimos usar a curgete numa tarte mas a tarte ficou bhlaaa. A culpa não era da tarte. Já a tínhamos feito milhões de vezes e fica sempre incrível.

A CULPA ERA DA CURGETE.

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E aqui nasce a minha inquietação.

Porque é que a curgete existe? Já tínhamos a abóbora, o pepino, a cabaça, a melancia… Não me parece que existisse aqui um vacuum que a curgete tivesse de suprir.

E pra que é que ela serve?

Acho que a frase que mais ouço em 2021 quando se fala de sopa é “Ai eu ponho curgete em vez de batata na sopa”. Mas porquêêêêêêê? Que lobby da curgete é esse? E o que é que têm contra as batatas? [Desde que chegou à Europa a batata tem sido vilipendiada, mas bem, deixo isso para outro post. Tenho que tratar da curgete agora].

Ainda há dias a falar com a minha prima M. sobre sopa, ela vira-se e diz “eu ponho curgete na sopa porque eu ADOOROO curgete”. E eu pensei: mas quem és tu??!.

Desabafei com uma amiga e ela disse-me que adora curgete (mais uma na equipa curgete!). A L. contou-me que no Brasil fazem coisas incríveis com curgete. Saladas deliciosas e refogados e mais coisas que me esqueci por causa do meu preconceito contra a curgete.

Mas também, pensei eu, o Brasil não é exemplo. Eles pegam numa coisa banal e transformam-na num fenómeno: futebol, carnaval, as novelas…!

E, por outro lado, “curgete” no Brasil diz-se “abobrinha” e há mesmo uma expressão “falar abobrinha” que significa não dizer nada de jeito. Ora isso não prova o meu argumento? Se um povo que nos deu o quindim e o brigadeiro chama a curgete de abobrinha isso não quer dizer que nem para eles ela tem valor?

A minha cena com a curgete é que aquilo não sabe a NADA. NAADAAA.

O que é que a curgete traz a uma prato?

Sabor? Nope.

Aroma? Nope.

Textura? Nope.

É um fantasma culinário. Está ali mas é como se não estivesse.

Talvez a curgete seja um legume niilista. Ou apenas um vegetal sem metafísica.

E mesmo assim, talvez a curgete tenha em si todos os sonhos do mundo.*

Eu também tenho muitos sonhos. Mas se calhar agora só tenho mesmo é falta de sono.

Vou ali dormir um bocado e vocês deviam fazer o mesmo porque estão a ler sobre curgetes!

Bom domingo a todos!

*Viram o que é que eu fiz aqui? Se não viram, ide ler a “Tabacaria” do Álvaro de Campos.