O dia do Kreisverwaltungsreferat. E do banco.

Todo o estrangeiro residente na Alemanha tem de ir ao Kreisverwaltungsreferat (lê-se §%&##@!<ª$Ü£$/Ç) ou serviço equivalente e dizer que, sim senhor, está na Alemanha, na morada X. E tem de fazer o mesmo quando se vai embora; avisar: pessoal, dei de froskes, já retirei devidamente a minha identificação da campainha e da porta e cumpri todos os meus deveres cívicos a que a grande pátria alemã obriga. (Reciclar principalmente! Daqui por um ano terei mais pormenores).

Ora bem e na terça lá fui eu. E vocês devem estar à espera de me ouvir dizer maravilhas desta experiência. A Alemanha, esse farol civilizacional (que além do Gutemberg e do Lutero nos deu os ursos de peluche, as gomas em forma de ursinho e simultaneamente a pílula e o jardim de infância), deve ter conseguido arranjar solução para a burocracia. Certamente que magníficos engenheiros alemães (um Dr. Dr. Ing-. Schmidt ou Müller) já devem ter construído uma máquina gigante, cheia de sensores e outros que tais que só de pormos o pé lá dentro, consegue retirar toda a informação necessária e actualizar as bases da administração pública. Sim, foi quase isso…

Quando dizia aos meus colegas que tinha que ir ao Amt (repartição pública) eles olhavam pra mim horrorizados e perguntavam-me se tinha feito marcação. Graças a deus, alguém fez isso por mim. Quando passava de bus pela repartição às 7h50, a fila de gente à porta chegava ao Lidl (o Lidl é um supermercado muito típico daqui, vocês aí não devem conhecer e não quero parecer snob a falar de coisas que não conhecem). Claro que vocês não sabem onde fica o Lidl comparado com a repartição, mas era uma fila grande pra carago. Maior que as do centro de saúde às segundas-feiras. E eu pensava: coitadinhas daquelas pessoas, devem ser todas estrangeiras e não sabem que há outro sítio onde são atendidas mais depressa, ou até um website onde podem fazer o que vieram aqui fazer.

AHAHAHAH um site! AHAHAHAH fazer coisas on-line! Que piada. E os carimbos? Os selos brancos? Que aconteceria a essa grande indústria?

Às 11h35 encontro-me com a V., foi ela que marcou a hora e que sabe exactamente o que vamos fazer. Ela é consultora e ajuda outros pobrezinhos como eu a encontrarem o seu caminho na administração pública alemã. Ela conta-me que as marcações só existem há 3 meses. Antes disso, as pessoas ficavam à espera, horas, dias inteiros. A sala ficava cheia e não havia lugares pro povo se sentar. Havia pessoas que ficavam horas à espera só pra quando finalmente chegava à sua vez, alguém lhes dizer: fila errada. Computer says no. NEIN! Volte amanhã outra vez, desta vez com os papéis certos. E na ordem correcta (isto sou eu a exagerar, mas deve ter acontecido!).

Graças à marcação, esperamos apenas 15 minutos pra sermos atendidas. E a funcionária que nos atendeu despachou-nos em 5. Muito eficiente.

Uma pergunta comum quando nos vamos registar é: “religião?”. Uma pessoa que não esteja habituada pode pensar que está na Alemanha no ano errado (ali mais perto de 1930 e coisa). Nada disso jovens. Na Alemanha os católicos, protestantes e judeus pagam um Kirchensteuer (=imposto da igreja).Que é automaticamente deduzido do nosso ordenado (no caso de trabalhadores por conta doutrem). Varia entre 8 e 9%. Giro, não é? É nestas alturas que se diz “graças a deus que sou ateu”.

 

Já a banca alemã, está muito à frente da portuguesa. Tinha marcação num conhecido banco alemão e à hora certa o senhor estava à minha espera. Eu só ia abrir uma conta pro meu ordenadozito português, reparem. Nada de investimentos xpto em lugares tropicais.

O sr. pergunta se tomo café ou cappuccino. E eu “Oi? Pra mim??! vocês não vão ganhar dinheiro comigo. Mas já que insistes aceito chá. Verde, tem?” E o Sr. vai ver e volta uns minutos depois com 2 chazinhos verdes à escolha e uma wafer da Dallmayr (é o El Corte Inglês cá do sítio). E eu a pensar que bem que se tá aqui. Mas também, quem tem conta na Caixa tem as expectativas mesmo lá em baixo… Se me dessem uma lata de friskies eu ia toda contente pra casa.

E pronto, papéis pra aqui, papéis pra ali. O man vai tirar cópias dos documentos e ainda pergunta se quero cópias pra mim. E eu “MAS QUE BANCO É ESTE? COMO É QUE ELES FAZEM DINHEIRO A DAR CHÁ AO POVO E CÓPIAS??!! CÓPIAS À BORLA! Ao preço que tá o toner! E depois vem a cereja no topo do bolo. StationeryQuem me conhece sabe que eu me vendo por material de escritório. E à borla então. Eu tenho aquela comichão típica que ataca todo o tuga quando há coisas à borla a serem distribuídas nas imediações. Fico irrequieta e quero ir buscá-las e dar-lhes uma casa.

Pra estas nem foi preciso, que elas vieram ter comigo. Réguas, canetas, cena pra tapar a câmara do portátil, cena pra limpar dedadas do ecrã do Handy (sim, isto é telemóvel em alemão. Não, não soa a alemão. Em alemão original devia ser qualquer coisa como Kleintragbaresgerätfürlangstreckenkommunikation = pequeno aparelho móvel para comunicações à distância. Mas eles ficaram-se por Handy. Danke schön por esta abébia). E o man acompanha-me à porta e eu já tenho planos de abrir uma conta offshore na Fuzeta e ver o que é que eles oferecem a esses clientes. Já sonho com moleskines… ou Fine & Candy!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Primeiro dia de trabalho. O Horror. O Drama. A Tragédia.

[Artur Albarran, onde estás tu?]

Noite mal dormida, cérebro a 100 à hora a pensar Oh meu deus tenho um blog, que fixe, #aitenhotantasideias, #aijesusqueincrível, #aiamanhãvoutrabalhar, #aiistoémesmoasério!  Resultado: acordo com olhos de anfíbio, mas apesar de tudo com acuidade visual suficiente para sobreviver às primeiras tarefas do dia sem me cortar, queimar ou afogar.

7h45. Frio. Apanho o bus. Há qualquer coisa de reconfortante em andar de autocarro. Talvez o seu bambolear me leve de volta àqueles domingos a passear de carro com os meus pais. 10 minutos de viagem bastavam para adormecer no banco de trás, de cara chapada no Jornal de Notícias e um fio de baba que ia ajudar a imprimir as notícias do dia na minha cara.

Depois do bus, apanho o S-Bahn, encaminho-me com as restantes formigas até ao edifício certo. O raio do edifício mais longe da estação. Puff! Já me cronometrei: demoro 8 minutos a fazer o caminho todo (estes tempos foram obtidos com calçado raso e tempo limpo, podem variar com condições climatéricas e calçado adverso).

E então, o horror? O drama? Caaaalma!

Como um SCHNECKEN (lê-se chnéquen) na padaria da empresa. Soa agressivo, mas não passa de um caracol de massa folhada com avelãs. Ainda não está aqui o horror e a tragédia.

Venho-me embora. Sim, não se passou nada de relevante no trabalho. Adiante!

Perco o metro das 29 porque fui à recepção levantar o cartão de identificação e afinal não é na recepção, é noutro edifício qualquer e só amanhã agora. Espero 10 MINUTOS pelo próximo. Entro. Esgoto as minhas vidas de Candy Crush. Saio do metro, vou pra paragem de bus. Sou abordada por um tipo que quer ver o calendário do meu telemóvel… DAFUQ? Que pervert! Faço-me de burra mas enganei-me e falei em alemão primeiro. Tona! Digo em inglês -What? Me know nothing, me Johanna Snow (esta última parte é inventada, mas podia ter acontecido). E ele fala inglês e está mesmo a falar a sério. E fala comigo como se eu fosse mesmo estúpida e não soubesse que o meu telemóvel tem calendário. Mostro-lhe o calendário e o homem a perguntar se dia 20 é sábado. Yes, it’s Saturday. -And 27? Also Saturday!  Isto é repetido várias vezes até o homem ficar satisfeito e ir à vida dele. E durante este tempo todo seguro o telemóvel com todas as minhas forças, porque achei desde o início que isto era uma cena pra me fanarem o telemóvel. AHAHAHAH silly me! Nem um pedinte quer o meu telemóvel (muito menos um que viva em Munique!)

E agora, o momento tenebroso. Continuo na paragem do 100 (onde o episódio anterior se passou). O 100 devia aparecer às 48. São 46 e não o vejo na rua. 47…, 48… Nem sinal de bus. Oh meu deus! 49. É a sério, o bus tá mesmo atrasado. PÁRA TUDO! 50: nunca mais chego a casa. Mais vale ir a pé. 51, começo a ver onde pra onde vão todos os outros buses. Nenhum vai pros meus lados. Que faço agora? Vou de metro, de eléctrico, de táxi, de uber, a pé? Houve um atentado? Porque é que o autocarro não aparece e não há informação nenhuma??!! Finalmente ele chega. E apercebo-me do mal que faz à minha saúde vascular viver numa cidade onde os transportes chegam a horas. Nunca na vida me stressava no Porto se um autocarro não tivesse chegado à paragem 10 minutos depois da hora prevista AHAHAHA já esperei meias horas, uma hora. Os circulares então! Me-ni-na! Nunca se pode confiar neles. E aqui, uma pessoa habitua-se (e eu só tou cá há uma semana) a que o autocarro chegue mesmo às 48 como diz no papelinho da paragem.

 

Lição do dia: o uso prolongado e confiante de bons transportes públicos pode conduzir ao aparecimento de desequilíbrio emocionais. Não use transporte públicos em caso de ansiedade ou depressão. Se tiver alergia a cheiro de sovaco e falta de banho, não tome transportes públicos durante o verão. Leia o Folheto Informativo. Em caso de dúvida ou persistência dos sintomas consulte o seu médico ou farmacêutico. Ou ande de carro.

 

A importância de ser (Herr)nesto. E Frau Neves.

Cá estou eu na minha primeira semana de Baviera. Só dirndls* (lê-se “dêndel”) e lederhosens dum lado pro outro. Tudo jolly-jolly com mais ou menos cerveja no bucho. Hordas de gente com fatinhos típicos no metro (os tais dendls e cenas) a encherem tudo, só para irem beber cerveja a um sítio diferente. Um Senhor de Matosinhos com esteróides. Enfim.

E eu a adaptar-me às vicissitudes de habitar esta terra bávara. À procura de sal grosso no supermercado e só há sal de mesa. Farinha com fermento: desconhecem a existência por completo. A fazer degustações de leite e água… E só à terceira tentativa é que descobrimos uma água que soubesse um bocado melhor que a da torneira (percebo porque é que há um jarro com filtro de água em casa!). A somar a isto o facto de aqui já ser inverno mesmo (pra nós, que pra eles 13º ainda é quentinho) com frio e chuva e tudo. E as minhas duas caixas de roupa e sapatos de inverno que não chegam!

Eu a semana toda a checar o tracking das encomendas na net. E quinta-feira eis que uma já está em distribuição! Alegremo-nos irmãos! Coração a palpitar a cada carrinha da chronopost que passa. A espreitar à janela como uma beata devota à espera que me toquem à campainha. E nada. A manhã toda. NADA. NICHTS. Saímos pra ir ao mercado de produtores aqui do sítio, comprar os costumeiros schwein** e bratwurst*** e quando chego a casa e volto a checar o estado da encomenda, tenho um simpático e-mail da chronopost alemã, em alemão (que sorte que falo a língua… malandros!) a dizer que a morada não foi encontrada e pra confirmar a morada em menos de 24 horas se não puf! Encomenda recambiada. E eu em pânico, a pensar no casaco novo por estrear, apertadinho dentro duma caixa de cartão a ser mandado de volta aqueles quilómetros todos. Na minha roupinha comprimida sem respirar, a aguentar mais este tormento. E a perguntar-me por que raio é que não deram com a morada…

[Ora, quem conhece a incrível peça de Oscar Wilde, A importância de ser Ernesto, [SPOILER ALERT] conhece as agruras por que passa a personagem Jack/Ernesto para casar com a sua amada Gwendolen. E como toda a empreitada só pode ter sucesso se ele conseguir provar que o Ernesto que inventou é, afinal, a sua verdadeira identidade, que ele nasceu Ernesto (e no berço do Ernesto certo) e Ernesto é o seu nome. Quem ficou confuso que leia a peça, que são minutos bem empregues! (Também recomendo o filme com o Rupert Grint e o Colin Firth).]

Mas adiante. Para a vida correr bem na Baviera e, especialmente, para que a nossa correspondência e encomendas sejam entregues no sítio certo há uma coisa fundamental a fazer. Mal muda de casa, o novo inquilino deve proceder à identificação da sua campainha e caixa de correio. O inquilino deve munir-se de uma etiqueta autocolante ou plastificada (consoante queira colocar a identificação dentro ou fora do receptáculo) do tamanho exacto da área disponível para identificação e identificar a sua campainha e caixa do correio com o seu nome. O andar é perfeitamente insignificante. Não há qualquer identificação do andar!! Eu não posso escrever na minha morada Rua X, 1.º andar frente porque quem me trouxer correspondência ou o que quer que seja não vai fazer a mínima ideia ao olhar para as campainhas qual é a campainha do 1.º frente ou quem é que lá mora. Eu tenho que identificar tudo com o meu nome e títulos. (Todos os títulos académicos alemães devem ser indicados na campainha da porta sob pena de prescreverem). Juro!

E, portanto, se na minha campainha estiver escrito Herr Nesto ninguém vai tocar lá à espera que encontre outra pessoa que não o Sr. Nesto! Mesmo que quem lá esteja seja uma Frau Neves.

Lição da semana: a importância de ser Frau Neves. E de informar o mundo devidamente que habita um andar numa qualquer rua de Munique.

 

*dirndl = vestido fofo e com efeito push-up usado pelas habitantes locais e por quem se quer disfarçar de Oktoberfest.

**schwein = porco. Principal alimento do bávaro. Desce pela garganta do bávaro num escorrega de cerveja até ao  estômago onde o espera mais cerveja.

***Bratwurst = salsicha feita de carne de vitela, vaca e/ou porco. Consumida em toda a Alemanha. Considerações mais profundas sobre a bratwurst apenas para quando tiver consumido espécimes suficientes.