Losing My Religion

Onde se fala de música, palavras e um bocadinho de religião.

Eu sou ateia. Mas houve três momentos em que estive quase a voltar para o lado de lá. E em todos, a música foi o factor decisivo.

Os dois primeiros ocorreram quando ouvi pela primeira vez o Requiem de Mozart e Carmina Burana. E ainda hoje, cada vez que os escuto, dá-me vontade de ir ouvir missa em latim1.

O terceiro foi quando fui ver o Asif Ali Khan Santoo (o príncipe do Qawaali) à Casa da Música e quase me converti ao Islão a meio do concerto.

Há qualquer coisa de hipnotizante nas duas línguas cantadas. Parece que urdem feitiços. No caso do latim deve ser porque os feitiços do Harry Potter soam todos “alatinados” (imperio, petrificus totalus, etc.). No caso do urdu não sei. A própria estrutura do canto Qawwali tem por objectivo induzir um estado hipnótico quer nos músicos quer nos espectadores. E ouvir Qawwali em urdu é incrível. (Note to self: começar a aprender urdu!).

E sem ser em latim ou urdu, EU ADORO MÚSICA.

Eu e provavelmente 99% da humanidade2. Citando a Wikipédia: “Não se conhece nenhuma civilização ou agrupamento que não possua manifestações musicais próprias”. E isto lembrou-me uma das muitas tiradas sarcásticas de Mr. Darcy em “Orgulho e Preconceito”:

Sir William thus began.

“What a charming amusement for young people this is, Mr. Darcy! – There is nothing like dancing, after all. – I consider it as one of the first refinements of polished societies.’

‘Certainly, Sir; – and it has the advantage also of being in vogue amongst the less polished societies of the world. – Every savage can dance.’

E assim, de uma forma um tanto racista, se prova a universalidade da música (e da dança).

Se há coisa capaz de redimir a humanidade é a música. Há qualquer coisa de comunhão na música, de universalidade… que é muito mais poderosa do que nas outras expressões artísticas. Só a música consegue fazer-nos chorar, rir, dançar e partilhar tudo isto com alguém que acabamos de conhecer num concerto.

Além disso, a incrível variedade de estilos musicais faz com que cada um encontre o seu cantinho. E para quem acha que há música superior e inferior sugiro que vejam o excelente discurso de Stephen Fry em Cambridge.

Eu, na música, como em muitas outras coisas, aplico a máxima Pessoana:

“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.”

E além do urdu e do latim, também curto canto gutural da mongólia. Se não conhecem, recomendo Khusungtun:

Ir para 3:38

Para quem gosta de substâncias mais pesadas também há metal mongol: THE HU.

A minha fé musical inclui tanto Chopin como Conan Osíris (que devia ser conanizado, sim, leste bem, para ser eternizado no panteão musical mundial), Sérgio Godinho, Lady Gaga, etc., etc. etc.

Próximo da música, só as palavras me causam tanta transcendência e conforto. Talvez Beethoven tenha sentido o mesmo e, por isso, juntou as duas ao compor a Nona Sinfonia. A Nona foi a primeira sinfonia onde se utilizou “a voz humana com o mesmo destaque que a dos instrumentos“. [Nietzsche disse qualquer coisa muito interessante acerca disto no “Nascimento da Tragédia”, mas em vão tentei encontrar a passagem no livro. Talvez volte a este tópico noutro artigo].

A experiência da literatura é sempre mais pessoal. Ler um livro é um diálogo com o autor e com nós mesmos. Por mais que se partilhe e se encontre outros que partilhem a mesma fé, nunca equivale a gritar em plenos pulmões a letra de uma canção num concerto com milhares de pessoas.

ACABEI DE TER UMA IDEIA: CONCERTOS LITERÁRIOS! Um palco com alguém a coordenar e o público a ler ou recitar ao mesmo tempo um texto ou poema. Tipo missa, mas com palavras mais bonitas, menos culpa e sem pecado. Ora aí está, o meu tipo de culto!

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Podíamos começar com as belas palavras de Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”:

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. 

[...]

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Como Bernardo Soares, estremeço se dizem bem. E tenho gravadas na memória “palavras inevitáveis” como as primeiras de Gabo em “Cem Anos de Solidão”, palavras de Murasaki Shikibu, de Pessoa, obviamente!, de Arundhati Roy e muitos outros.

Alicercei a minha fé em canções e poemas e os meus sacerdotes são músicos e escritores. Não preciso de missa ou água benta e tenho muitos livros sagrados em casa por onde escolher.

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Portanto, não tenhas medo de ser ateu. Há todo um panteão novo à tua espera.

E podes começar a rezar com esta oração em forma de poema do “Poema de canção sobre a esperança” de Álvaro de Campos:

Dá-me lírios, lírios,

E rosas também.

Mas se não tens lírios

Nem rosas a dar-me,

Tem vontade ao menos

De me dar os lírios

E também as rosas.

Basta-me a vontade,

Que tens, se a tiveres,

De me dar os lírios

E as rosas também,

E terei os lírios —

Os melhores lírios —

E as melhores rosas

Sem receber nada.

A não ser a prenda

Da tua vontade

De me dares lírios

E rosas também.

E agora ide lá ouvir R.E.M. que devem tar com isso na cabeça desde o início do artigo!

1 Recentemente descobri que o líder do Chaga ia ouvir missa em latim quando era novo. Talvez a missa em latim não seja recomendável a todos. Vejam se têm antecedentes de racismo ou xenofobia, a missa em latim pode não ser para vocês!

2 Eu só conheço uma pessoa que não gosta de música e o universo vingou-se e deu-lhe dois filhos, um que toca bateria e o outro saxofone!

Ensaio sobre a curgete.

ESTE POST É O RESULTADO DE FALTA DE SOCIALIZAÇÃO CONTINUADA E PODE CAUSAR SENTIMENTOS DE ALIENAÇÃO OU ENFADO EXTREMO.

Sim, vou escrever sobre curgetes. Porque não? Estou há meses em quarentena e distanciamento social, isto começa a afectar a cabeça duma pessoa.. E têm visto as notícias ultimamente? Pra que é que hei-de falar de viagens e livros e do resto? Qual seria o objectivo?

Por isso vou falar de curgetes.

O meu interesse pelo tópico nasceu durante a última quarentena. “Interesse” talvez seja excessivo. Digamos que me deparei com a questão da existência da curgete enquanto estava fechada em casa. E isso incomodou-me.

Como quase todos os portugueses bombardeados nas redes sociais com anúncios de venda de cabazes de legumes online (bio e não bio), cedi e decidi mandar vir um cabaz de frutas e legumes.

O cabaz trazia diversos frutos e legumes e claro, uma curgete. A curgete tornou-se omnipresente na vida dos portugueses.

Enquanto era miúda nem me lembro de ouvir pronunciar o seu nome. (Também podia ser porque eu e os legumes só fizemos as pazes há cerca de 10 anos). Mas agora? Há courgettes, courgetes e curgetes em todo o lado.

O problema começa logo por ninguém saber como se escreve o raio do bicho. É com “ou”? Com dois “tt”?

O dicionário esclarece:

curgete, do francês "courgette": fruto pertencente à família das Cucurbitáceas, a que também pertencem as abóboras, de forma alongada, casca verde e polpa branca ou amarelada, que é colhido e consumido no início do seu desenvolvimento.

Mas voltemos ao cabaz. Fomos comendo tudo e a curgete ficou pro fim.

A minha inquietação com a curgete começou aqui. O que é que eu ia fazer com ela?

Lá decidimos usar a curgete numa tarte mas a tarte ficou bhlaaa. A culpa não era da tarte. Já a tínhamos feito milhões de vezes e fica sempre incrível.

A CULPA ERA DA CURGETE.

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E aqui nasce a minha inquietação.

Porque é que a curgete existe? Já tínhamos a abóbora, o pepino, a cabaça, a melancia… Não me parece que existisse aqui um vacuum que a curgete tivesse de suprir.

E pra que é que ela serve?

Acho que a frase que mais ouço em 2021 quando se fala de sopa é “Ai eu ponho curgete em vez de batata na sopa”. Mas porquêêêêêêê? Que lobby da curgete é esse? E o que é que têm contra as batatas? [Desde que chegou à Europa a batata tem sido vilipendiada, mas bem, deixo isso para outro post. Tenho que tratar da curgete agora].

Ainda há dias a falar com a minha prima M. sobre sopa, ela vira-se e diz “eu ponho curgete na sopa porque eu ADOOROO curgete”. E eu pensei: mas quem és tu??!.

Desabafei com uma amiga e ela disse-me que adora curgete (mais uma na equipa curgete!). A L. contou-me que no Brasil fazem coisas incríveis com curgete. Saladas deliciosas e refogados e mais coisas que me esqueci por causa do meu preconceito contra a curgete.

Mas também, pensei eu, o Brasil não é exemplo. Eles pegam numa coisa banal e transformam-na num fenómeno: futebol, carnaval, as novelas…!

E, por outro lado, “curgete” no Brasil diz-se “abobrinha” e há mesmo uma expressão “falar abobrinha” que significa não dizer nada de jeito. Ora isso não prova o meu argumento? Se um povo que nos deu o quindim e o brigadeiro chama a curgete de abobrinha isso não quer dizer que nem para eles ela tem valor?

A minha cena com a curgete é que aquilo não sabe a NADA. NAADAAA.

O que é que a curgete traz a uma prato?

Sabor? Nope.

Aroma? Nope.

Textura? Nope.

É um fantasma culinário. Está ali mas é como se não estivesse.

Talvez a curgete seja um legume niilista. Ou apenas um vegetal sem metafísica.

E mesmo assim, talvez a curgete tenha em si todos os sonhos do mundo.*

Eu também tenho muitos sonhos. Mas se calhar agora só tenho mesmo é falta de sono.

Vou ali dormir um bocado e vocês deviam fazer o mesmo porque estão a ler sobre curgetes!

Bom domingo a todos!

*Viram o que é que eu fiz aqui? Se não viram, ide ler a “Tabacaria” do Álvaro de Campos.

Who let the dogs (e os cavalos de madeira) out ?

ATENÇÃO: Este post vai falar de homens vestidos de cão em São Francisco e de meninas que correm com cavalos de madeira pela Finlândia.

Comecemos pelos States.

São Francisco: ponte Golden Gate, Harvey Milk, direitos LGBTQ, tostas de abacate, Silicon Valley. É o que me vem à cabeça quando penso em São Francisco. E a partir de agora: homens vestidos de cachorro a passear pelas ruas. E não são mascotes de nenhuma loja ou marca.

A moda começou no BDSM* e saltou para fora dos quartos. Estes homens colocam máscaras de cachorro, açaimes, coleiras e/ou caudas… e andam em matilhas pela cidade. Até aqui nada de estranho (ahahah). Não, isto não acontece só durante o Carnaval.

Eles identificam-se com a personalidade brincalhona e instintiva dos nossos companheiros caninos, adoptam nomes de cachorro (será que em Portugal isso daria azo a Tejos, Mondegos e Bobis a passear sobre duas patas?) e às vezes usam rugidos e ganidos como forma de comunicação.

Alguns identificam-se com uma raça de cães específica e usam o seu “pup name” (=nome de cachorro”) na “vida real”.

Muitos de vós, leitores atentos, devem estar a esbugalhar os olhos. A pensar que o Apocalipse está mesmo próximo e que o fim vai chegar antes de o aquecimento global lixar isto tudo.

Mas não! Acalmai-vos! Reparem: pessoas a identificarem-se com animais ou os seus poderes já existem desde o início dos tempos – ou pelo menos desde que a caça do mamute foi proibida. No mundo do desporto há muitos clubes que têm por símbolo animais. Uns mais bonitos que outros claro, mas dragões há poucos e o último fugiu de Westeros! E se há quem se disfarce de animal no Carnaval, há quem vista listas de zebras e pintas de leopardo o ano todo.

E nem quero falar das milhentas tribos que invocam o poder de certos animais em rituais.

Mas passemos aos cavalos.

Lembram-se daqueles cavalos de brincar que basicamente consistiam num pau de vassoura e uma cabeça de cavalo em peluche? E se eu disser que há campeonatos de dressage de cavalo de madeira? Onde crianças (e só meninas) executam coreografias montadas num cavalo de madeira, mexendo as pernas como se fossem as do cavalo e mantendo o torso direito como um cavaleiro dum cavalo de carne e osso? Não é mentira, isto acontece na Finlândia.

Começou como uma espécie de sociedade secreta, com discussões online. Mas todas estas crianças/mulheres juntaram-se e hoje em dia há um campeonato nacional, treinadores, alunas e muitos cavalos de madeira a galopar pela Finlândia fora.

No início, algumas praticantes foram vistas como um bocado estranhas. Afinal, que faz uma adolescente a brincar com cavalos de madeira? Balha-me deus. Claramente deve estar possuída por belzebu. A uma delas ate lhe disseram que nunca ia arranjar namorado.

Aparentemente, brincar com um cavalo de madeira não enquadra naquilo que é suposto uma adolescente fazer. A partir do momento em que alguém entra na puberdade deve deixar tudo o que e infantil para trás. Para sempre (ou pelo menos até ter filhos e poder fazer de conta que vai comprar coisas pra eles).

Fico contente que a Finlândia e São Francisco sejam um espaço de liberdade, onde uma pessoa pode fazer o que lhe da na gana, sem magoar ninguém e sem ser chateado.

E voc~e que está a ler isto, deixe os outros andar vestidos como querem e brincar com o que quiserem! Ninguém tem nada a ver com isso. E você faça também aquilo que quer**.

* definição para as crianças que estão a ler o post: Banda Desenhada Sem Maneiras

**respeitando as normas da Constituição da República Portuguesa, as leis e demais disposições do ordenamento jurídico português, os preceitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, etc., etc., etc. E vai ver que mesmo com tanta lei há muito espaço para ser feliz!

* Mas na verdade é Bondage, “Dominance” e SadoMasoquismo

Fontes: https://www.nytimes.com/2019/04/21/world/europe/finland-hobbyhorse-girls.html

The nutcracker’s oath/O juramento do quebra-nozes

Quando trabalhas com pessoas chamadas “Frey”, sais do escritório e parece que estás do outro lado da muralha, só neve e sem vivalma e vives num sítio onde the night is dark and full of bikers, dá-te pra isto:

The night gathers and now my watch begins. 
It shall not end until my death. I shall take  no wife (not even if made of wood), hold no lands (or nuts), father no children. I shall wear no crowns or anything that is not suitable for a nutcracker. I shall live and die at my post. I am the cracker of the nuts.
I am the watcher of the tomes.
I am the sprinkler against the autos de fé.
The light against light fiction.
The horn thak keeps the moths away.
The shield that guards the treasure of men.
I pledge my life and honor to the Book’s Guard, for this night and for all nights to come.
A noite chega e começa a minha vigília. 
Só acabará com a minha morte. 
Não tomarei mulher (nem sequer feita de madeira), nem terei terras (nem frutos secos) ou filhos. Não usarei coroas ou qualquer outro adereço inadequado para um quebra-nozes.  Viverei e morrerei no meu posto.  Eu sou aquele que quebra as nozes.
Eu sou o sentinela dos tomos. Eu sou o borrifador contra os autos de fé.
A luz contra a literatura light.
A corneta que afasta as traças.
O escudo que protege os tesouros da humanidade.
Entrego a minha honra e a minha vida à Guarda dos Livros por esta noite e por todas as noites que virão.

Um inglês e um bulldog francês entram num bar. Na China.

white and black english bulldog stands in front of crackers on bowl at daytime

O Brexit e a guerra comercial entre os EUA e a China parecem, à partida, temas bastante aborrecidos. Mas olhem que nãaaaaao! (ler com voz de Álvaro Cunhal em debate com Mário Soares*).

 

O Brexit.

O mais temido aconteceu quando a 23 de Junho de 2016 (altura em que no burgo se está numa fila qualquer ou pra fêveras ou pra sardinhas) os british decidiram que estavam fartos e bazaram. Sem sair do sítio. Desde aí tem sido o horror, o drama, a tragédia. E muita especulação.

O maestro e compositor britânico Howard Goodall deu uma entrevista recente (onde?) ao NYTimes (As Brexit Looms, Musicians Brace for the Worst) onde se abordam as consequências do Brexit para a indústria musical. E para quem como eu nunca se deu ao trabalho de pensar no Brexit (a não ser para ir a Londres antes de Março 2019) é bastante revelador. E as consequências não são poucas. Num artigo no site dele explica em mais detalhe e com o típico humor britânico (Brexit and music: Theme and Variations) o impacto que as fronteiras trarão. Ide lá e leiam, não vou tar agora a explicar.

Uma curiosa consequência do iminente Brexit tem sido o surgimento de hoarders** e preppers*** no outro lado do canal. Montes de brits estão a comprar latas de conservas, arroz, massas, etc. para se protegerem do grande Armagedão que aí vem. Imagino que arenque fumado, bacon, feijões e papas de aveia também façam parte da lista de compras. Mais informações aqui: British Hoarders Stock Up on Supplies, Preparing for Brexit.

Se esta parece, à partida, uma actividade inofensiva e até divertida, o divertimento termina quando há quem depende de medicamentos fornecidos por empresas fora do Reino Unido e não pode acumulá-los à maluca na garagem, porque dependem de receita médica. E não sabem como será a partir de Março.

Bifes,

Deixai essa ideia louca do Brexit! Nós estivemos unidos e em guerra desde que a Europa começou a gatinhar. Passámos por tanta coisa. Voltai! A gente perdoa-vos o Henrique VIII, o protestantismo, o Francis Drake, a destruição da nossa armada, o Tratado de Methuen, a guerra dos cem anos, a guerra dos 30 anos (o.k. desta vocês não tiveram culpa), o divórcio da princesa Diana, a morte da princesa Diana, o Carlos & a Camila, a rainha…

Voltemos a vestir licra e a jogar os Jogos sem Fronteiras!

 

China.

E no outro lado do mundo: China, 2018. Plena guerra comercial entre EUA e a RPC. Quem sofre? Golden retrievers e bulldogs franceses.

Inusitado, hã?

A comida de cão foi a última vítima nesta guerra fascinante. Os donos de canídeos que importam ração dos EUA viram os preços da ração aumentar por causa das tarifas comerciais. Como se não bastasse, as vingativas alfândegas chinesas atrasam os carregamentos e quem sofre são os Bobis.

Muitos donos importam ração porque não confiam nas marcas chinesas. (E quem é que os pode culpar? Lembram-se do escândalo do leite em pó e das vacinas estragadas?). O bem-estar animal não deve estar nas prioridades das empresas chinesas.

E, como consequência, há gente que não consegue dormir porque não sabe se vai conseguir comprar a ração desejada para o seu amigo canino ou felino.

E quando conseguem comprar ração, provam-na antes com medo que esteja contaminada! Se a ração souber a peixe podre, frango em decomposição ou semelhantes, não deixam o Bobi chegar perto.

Agradeço à minha gata poder continuar a viver sem saber a que é que Advance para gatos esterilizados sabe!

Artigo completo em The Trade War’s Latest Casualties: China’s Coddled Cats and Dogs

Mais uma vez, a excelência do jornalismo é do NY Times, mas chega-lhe aqui, nesta excelência de conteúdos que é este blog.

 

*https://www.youtube.com/watch?v=BNpIOarNQ08 minuto: 0.47

** acumuladores

*** uma pessoa que acredita que um evento catastrófico irá acontecer e se prepara activamente para ele, normalmente criando reservas de comida, munições e outras provisões. Não confundir com extreme couponing. O extreme couponing é uma actividade que consiste na recolecção de tudo o que é cupão de desconto (através de revistas da especialidade ou na internet) de modo a tentar adquirir quantidades absurdas do mesmo produto a custo zero. A sobrevivência não é, de todo, a prioridade do extreme couponing!

Deixem o leite em paz.

close up of milk against blue background

No princípio era a lactose. Hordas de intolerantes a este hidrato simples quiseram bani-lo do leite.

Depois foram os “estudos”. A nascer como cogumelos, provando que o leite, ele mesmo, devia ser banido da dieta dos adultos. Porque não somos nenhum vitelo para beber leite pra sempre e tal e que faz mal e que o leite é o ópio do séc. XXI. Enfim.

Depois foram surgindo os “leites” vegetais, de soja, de amêndoa, de azeitona do Pará, de tudo… Há inclusive uma querela na indústria dos lacticínios sobre se essas bebidas vegetais se devem poder chamar “leite” (cfr. Got Milk? Or Was That Really a Plant Beverage?).

Resumindo, anda tudo tolo com o leite. Mas o melhor ainda estava pra vir. Preparem-se.

Ora bem, no outro extremo do espectro, mais propriamente na extrema-direita há mentes iluminadas que distorcem o resultado de estudos científicos sobre a capacidade de processar a lactose (mais comum na população “branca”) para nisso afirmarem a superioridade da raça branca, ariana, cara-pálida… o que seja.

Estas criaturas pegaram num estudo sobre a história evolutiva do gene que permite digerir a lactose e interpretaram-no duma maneira bastante idiota. O estudo referido no artigo do NYTimes (Why White Supremacists Are Chugging Milk (and Why Geneticists Are Alarmed) explica que o gene que permite a digestão da lactose normalmente desliga-se depois da infância. Mas com a chegada dos primeiros pastores à Europa (há cerca de 5000 anos atrás), uma mutação do gene gerou uma vantagem nutricional de tal forma que quase todos os que sobreviveram a transportaram para as novas gerações. Mas esta mutação genética não é exclusiva da Europa, ocorreu também em pastores do norte de África como refere o estudo. E foi isto.

Nem vou entrar na questão da “superioridade” e da “raça” (porque não saía daqui hoje), mas beber leite em adulto é um super poder agora? Aquela gente tem mesmo vistas curtas ou calcificaram a mioleira. Pra mim um super poder é voar sem um fato da redbull, tornar-se invisível quando se quiser, teletransporte, telepatia, telecinese, sei lá. Há uma catrefada deles aqui: List of Supernatural Powers and Abilities mas não vi nenhuma “capacidade de beber leitinho”.

E pra quem quiser ver, no artigo há um vídeo com senhores de extrema direita ou supremacia-ó-cenas a emborcar leite que nem doidos. E a mostrarem que são fortes e o caraças. Era aqui que devia entrar o Diácono Remédios e dizer “não havia necessidade zzzz”.

Mas tá tudo tolo?

Eu quando era pequena achava que tinha poderes porque conseguia ver “através” das pessoas.

Mais tarde disseram-me que era estrabismo.

Acho que alguém lhes devia dizer pra irem ao médico. Era o que deviam ter feito comigo.

P.S. Nenhum intolerante à lactose ou bebedor de leites vegetais foi maltratado durante a redacção deste artigo. Aqui no blog somos todos muito tolerantes. À lactose inclusive.

Jovens chineses tornam-se demasiado comunistas e confundem o governo

Há uma coisa que me ouço dizer muitas vezes e é “li no New York Times que…”. E cada vez que digo lembro-me da tipa do American Pie, que estava sempre a dizer “Once, in the band camp…”. Mas eu sou uma fã incondicional do nytimes e enquanto eles tiverem artigos que me interessem, vou continuar a dizê-lo!

Na semana passada encontrei um artigo bastante curioso: jovens estudantes universitários chineses, embebidos e imbuídos desde pequenos na doutrina de Marx, Lenin e Mao foram para a rua, mais propriamente para Huizhou, para organizar sindicatos junto dos trabalhadores fabris e protestar pela melhoria das condições de trabalho. A mim isto pareceu-me um TPC típico dum Estado Comunista (ahah Estado e comunismo juntos na mesma frase! Que laracha! E um oximoro também*)

Só que ao governo chinês não. Quer dizer, deve-lhes ter parecido que esta gente estava a tentar ganhar créditos extra e não gostaram. E vai na volta, toca a perseguir e prender esta rapaziada.

A maior parte foi libertada, mas alguns ainda estão detidos ou em prisão domiciliária. Entretanto, algumas universidades têm impedido que grupos marxistas se reúnam. E o governo teme que a proliferação destes grupos de estudantes e dos seus ideais (que  deviam também ser os ideais do governo coff coff) ponha em causa o romance da China com o capitalismo.

É difícil ignorar a ironia da situação toda. Mas é apenas mais um exemplo da repressão exercida pelo Estado chinês. Desta vez apenas um exemplo mais caricato e irónico.

A excelência do jornalismo é do NY Times, mas chega-lhe aqui, nesta excelência de conteúdos que é este blog. No link abaixo, o artigo na íntegra.

https://nyti.ms/2NPExM6

 

 

*oximoro = recurso estilístico que consiste em reunir, no mesmo conceito, palavras de sentido oposto ou contraditório. O oximoro é um oximoro em si mesmo, do grego oxymóron,  de oxýs, «arguto» +mórón, «estúpido». A etimologia todos os dias, nem sabe o bem que lhe fazia 😀