5 lições que aprendi com César

Introdução:

Onde se tenta trazer Caio Júlio César para a blogosfera e para a idade do Insta. (Eu sei que agora é o TikTok que está a dar mas ainda não é desta que faço uma coreografia a explicar a vida de César).

Como parte do meu desafio para 2021 estou a ler tudo o que tenho em casa. A seguir na lista estava uma biografia incrível de César (“César, A Vida de um Colosso”) escrita por Adam Goldsworthy que nunca consegui acabar.

Para começar, do alto das suas 746 páginas (666 do corpo de texto, será que o número foi uma coincidência? MUAHAHAHAHAH) não é a coisa mais fácil de transportar e depois nunca lhe consegui dar a atenção devida para progredir suficientemente rápido no texto. Desta vez adoptei a técnica das 50 páginas por dia e ele voou num instante!

O livro está incrivelmente bem escrito e a leitura flui muito bem. E para vos falar do livro sem resumir a história de César, que toda a gente já conhece, resolvi tornar isto mais digerível e fazer uma coisa tipo “5 cafés que tens de experimentar no Porto” só que versão biografia do romano mais famoso da história.

A ideia era escrever um artigo pequeno, mas entusiasmei-me e isto tá um bocado grande! Se se aborrecerem, leiam só os títulos e vejam o vídeo com o Avelino Ferreira Torres, uma figura mítica da política portuguesa dos anos 90.

Aqui ficam 5 conselhos para a vida baseados na vida de um homem branco que morreu em 44 a.C. Aproveitem que eu não duro sempre! E César já não dura há muito tempo!

1. Constrói pontes.

Literalmente. César evitava andar de barco, em vez disso, se era preciso atravessar um curso de água qualquer, ordenava às suas legiões que construíssem uma ponte:

A tribo oferecia-se agora para fornecer barcos para a travessia do rio, mas o procônsul [César] sentiu que era “demasiado arriscado, e que estaria abaixo da sua própria dignidade e da do povo romano” empregar tal método. Em vez disso, pôs as suas legiões a construir uma ponte.

Photo by Nicolas Postiglioni on Pexels.com

Metaforicamente falando, também na vida isto é uma lição importante. César fartava-se de fazer favores a toda a gente e aproveitava cada oportunidade. A ideia era que um dias essas pessoas iriam retribuir quando ele precisasse. A vida pública romana assentava numa cadeia de conhecimentos (agora chamamos-lhe networking) e favores. Claro que isto depois degenerou em coisas como a máfia e O Padrinho (O Poderoso Chefão no outro lado do Atlântico) mas não vamos pensar nisso agora.

Outra coisa tão importante como criar pontes é não dar cabo delas. Em inglês há uma expressão que significa “não queimes as tuas pontes” (“don´t burn your bridges“), ou seja, não destruas relações, amizades ou a tua reputação intencionalmente. Por exemplo, quem nunca teve um emprego que detestou e em que não desse graças aos céus quando se livrou dele? Mas isso não implica que se deva sair a mal ou dizer coisas de que mais tarde nos iremos arrepender só porque naquele momento achamos que nunca mais vamos ver aquela gente e nunca iremos precisar deles para nada. É como aquela frase que passa nas correntes de e-mail (isso ainda existe?) “trata bem quem encontras a subir porque nunca sabes quem vais encontrar a descer”.

2. Comparar-se não faz bem, trabalhar faz melhor.

Estava euzinha a ler a biografia e automaticamente comparei o meu eu de 34 anos com o César de 19, já a comandar legiões espontaneamente para proteger entrepostos romanos no oriente e comecei a pensar no que é que ando a fazer da minha vida. Não que comandar legiões seja uma ambição minha, mas é difícil evitarmos comparações com outros ou até com aquilo que esperávamos alcançar com a idade X.

Fastforward algumas páginas e eis que César, de visita a Cádis enquanto questor do governador Antístio Veto (há que adorar estes nomes romanos!), sente o mesmo:

César terá ficado muito desanimado ao ver uma estátua de Alexandre, o Grande no Templo de Hércules, pois tinha feito tão pouco numa idade em que o rei da Macedónia tinha conquistado metade do mundo.

Photo by Taryn Elliott on Pexels.com

Toda a gente sabe que “a galinha da vizinha é melhor que a minha” ou que “the grass is always greener on the other side” e as redes sociais só vieram piorar isso. Principalmente porque temos tendência para comparar o nosso pior com o melhor dos outros e nunca vemos os problemas que possa haver do outro lado da cerca.

Saber que César se comparou a Alexandre numa altura em que ainda não tinha conquistado nada e que se sentiu mal por isso relembrou-me duas coisas:

1 – Se não conseguimos evitar comparar-nos com quem parece ser mais bem-sucedido que nós1, devemos usar isso como motivação para trabalhar mais e não achar simplesmente que já não há nada a fazer porque não comandamos legiões aos 19… (e onde é que eu ia encontrar uma legião se quisesse comandar uma agora?)

2 – Tendemos a olhar para trás como se o sucesso fosse inevitável e se há coisa que Adrian Goldsworthy reforça ao longo do livro é que César não era particularmente especial. Era talentoso, sim, mas não mais que outros romanos da altura. E esteve muitas vezes perto de perder tudo, mas aprendia com os seus erros e isso, aliado a alguma sorte (audaces fortuna juvat!) fez com que conseguisse construir uma carreira de sucesso. E isto leva-me ao ponto seguinte.

3. O sucesso e o fracasso não são inevitáveis.

Temos sempre a tentação de olhar para o passado e achar que era inevitável que Caio Júlio César se tornasse no “César” que hoje conhecemos e isso não é verdade. Não é verdade para César nem para nenhuma outra figura histórica.

Não havia propriamente um clima favorável a que nascesse um “César” em Roma. A república romana tinha nascido precisamente para evitar que um homem ou um pequeno grupo de homens se tornassem demasiado poderosos. E, se não fosse a guerra civil (provocada pelo seu ex-amigo Pompeio) talvez a vida e a fama de César tivessem sido muito diferentes.

Até esse momento, César tinha-se evidenciado como comandante militar nas campanhas na Gália e conseguido algum sucesso mas nada que fosse ficar nos anais da história.

E, mesmo todo esse sucesso, não foi fácil ou linear. César cometeu alguns erros graves (como com os helvécios ou os nérvios) que lhe iam custando a vida. Mas aprendeu com eles e seguiu em frente.

Claro que a sorte dá uma ajuda mas ficar sentado no sofá à espera que a glória bata à porta complica bastante as hipóteses de aparecermos nos livros de história.

Photo by Rachel Claire on Pexels.com

Se aprender com os erros é fundamental, é preciso estar disposto a fazê-los. Sair da zona de conforto. E hoje em dia nem é preciso atravessar o Rubicão. Por outro lado há YouTubes e Whatsapps para imortalizarem todos os pequenos fracassos da vida.

Mas quem não arrisca não petisca.

4. O espírito de equipa pode salvar-te!

Esqueçam os insufláveis e os joguinhos de “team building” no dia da empresa. Enfrentar a morte. Isso sim, cria espírito de equipa e forja os líderes do amanhã!

Não proponho proprimente que jogos de gladiadores substituam os eventos de team building, se bem que alguns já estiveram mais longe disso. Mas o que pude constatar ao ler este belo livro no meu sofá, é que estar perto da morte e lutar pela vida contra um inimigo comum cria um espírito de equipa do caraças.

Também se as coisas correm mal, a equipa desfaz-se mais rapidamente.

Na primeira incursão contra os helvécios César cometeu um erro grave que, por sorte, não significou a morte dos seus homens. Nos “Comentários”2, César culpa o seu subordinado, r a responsabilidade, em último caso, era dele e os seus homens sabiam-no.

Este evento, foi uma grande chamada de atenção para César. Mais uma vez, aprendeu com o erro e na batalha seguinte (Bibracte) deu o exemplo aos seus soldados.

César decidiu que era chegado o momento para um gesto grandioso; desmontou de forma notória e enviou o seu cavalo para a retaguarda (…) para que “todos estejam expostos ao mesmo perigo e para afastar a tentação de fugir”.

Várias vezes, ao longo da sua vida, deu provas aos que o seguiam que não lhes pedia mais do que ele exigia a si próprio:

César conduzia a coluna em marchas de treino e no campo, por vezes a cavalo, mas a maioria das vezes a pé, como qualquer outro legionário. Era um gesto que pretendia mostrar-lhes que não esperava deles nada que ele próprio não fizesse.

Photo by Specna Arms on Pexels.com

E que punha o seu exército em primeiro lugar:

… para César, ficar ele em perigo era preferível a pôr em risco o seu exército.

Mais tarde, durante a guerra civil, a lealdade dos seus soldados seria decisiva para a vitória de César. E essa lealdade deveu-se à liderança de César.

E não se pense que era assim com todos os comandantes romanos (p. ex., houve imensas deserções nas tropas de Pompeio). Apesar da organização do exército romano, as deserções e traições eram comuns. Ser assassinado pelos subordinados não era propriamente raro. A soma certa de sestércios podia tornar atractivo eliminar um comandante a mando de um rival.

Resumindo: não digo para agora irmos todos para o exército, mas há princípios que podem ser aplicados a qualquer líder, onde quer que ele esteja.

Liderar pelo exemplo e pôr o grupo em primeiro lugar.

Nem é preciso encontrar legionários ou centuriões!

5. A inveja mata.

Podes construir pontes, trabalhar para ser o melhor, seres um líder adorado, mas um grupo de rivais invejosos pode decidir que prefere matar-te a tentar competir contigo/com o teu talento.

Eu sei que posso não ser a pessoa mais imparcial neste tópico. Eu adoro César e os romanos e direito romano e tudo e tudo e tudo. Mas aquilo que lhe fizeram foi uma grande:

e é tudo o que vou dizer sobre este tema.

Conclusão

Espero que tenham chegado até aqui. Tá um bocado grande, mas eu entusiasmo-me a escrever sobre romanos. É a minha cena.

Tenho um fraco por togas candidas3 e direito romano. Um dia ainda hei-de tatuar os tria praecepta iuris4 numa nádega (ou nas duas, não devem caber só numa) e tentar trazer o “roman sexy” back (ler com voz de Justin Timberlake em SexyBack).

1 Sobre esta questão de nos compararmos com pessoas mais bem-sucedidas do que nós sugiro que ouçam o podcast “The Happiness Lab” sobre isto. Estão a perder anos de vida com essas comparações!

2 Commentarii de Bello Gallico (latim para “Comentários sobre a Guerra Gálica”) são textos de Júlio César, divididos em oito volumes, onde ele relata as operações militares durante as Guerras da Gália, que se desenrolaram de 58 a.C. a 52 a.C.

3 Toga candida – toga de um branco imaculado, era envergada pelos candidatos a cargos públicos (os candidati, de onde deriva a palavra candidato)

4 Os três princípios jurídicos fundamentais: honeste vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar os outros) e suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu)

Losing My Religion

Onde se fala de música, palavras e um bocadinho de religião.

Eu sou ateia. Mas houve três momentos em que estive quase a voltar para o lado de lá. E em todos, a música foi o factor decisivo.

Os dois primeiros ocorreram quando ouvi pela primeira vez o Requiem de Mozart e Carmina Burana. E ainda hoje, cada vez que os escuto, dá-me vontade de ir ouvir missa em latim1.

O terceiro foi quando fui ver o Asif Ali Khan Santoo (o príncipe do Qawaali) à Casa da Música e quase me converti ao Islão a meio do concerto.

Há qualquer coisa de hipnotizante nas duas línguas cantadas. Parece que urdem feitiços. No caso do latim deve ser porque os feitiços do Harry Potter soam todos “alatinados” (imperio, petrificus totalus, etc.). No caso do urdu não sei. A própria estrutura do canto Qawwali tem por objectivo induzir um estado hipnótico quer nos músicos quer nos espectadores. E ouvir Qawwali em urdu é incrível. (Note to self: começar a aprender urdu!).

E sem ser em latim ou urdu, EU ADORO MÚSICA.

Eu e provavelmente 99% da humanidade2. Citando a Wikipédia: “Não se conhece nenhuma civilização ou agrupamento que não possua manifestações musicais próprias”. E isto lembrou-me uma das muitas tiradas sarcásticas de Mr. Darcy em “Orgulho e Preconceito”:

Sir William thus began.

“What a charming amusement for young people this is, Mr. Darcy! – There is nothing like dancing, after all. – I consider it as one of the first refinements of polished societies.’

‘Certainly, Sir; – and it has the advantage also of being in vogue amongst the less polished societies of the world. – Every savage can dance.’

E assim, de uma forma um tanto racista, se prova a universalidade da música (e da dança).

Se há coisa capaz de redimir a humanidade é a música. Há qualquer coisa de comunhão na música, de universalidade… que é muito mais poderosa do que nas outras expressões artísticas. Só a música consegue fazer-nos chorar, rir, dançar e partilhar tudo isto com alguém que acabamos de conhecer num concerto.

Além disso, a incrível variedade de estilos musicais faz com que cada um encontre o seu cantinho. E para quem acha que há música superior e inferior sugiro que vejam o excelente discurso de Stephen Fry em Cambridge.

Eu, na música, como em muitas outras coisas, aplico a máxima Pessoana:

“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.”

E além do urdu e do latim, também curto canto gutural da mongólia. Se não conhecem, recomendo Khusungtun:

Ir para 3:38

Para quem gosta de substâncias mais pesadas também há metal mongol: THE HU.

A minha fé musical inclui tanto Chopin como Conan Osíris (que devia ser conanizado, sim, leste bem, para ser eternizado no panteão musical mundial), Sérgio Godinho, Lady Gaga, etc., etc. etc.

Próximo da música, só as palavras me causam tanta transcendência e conforto. Talvez Beethoven tenha sentido o mesmo e, por isso, juntou as duas ao compor a Nona Sinfonia. A Nona foi a primeira sinfonia onde se utilizou “a voz humana com o mesmo destaque que a dos instrumentos“. [Nietzsche disse qualquer coisa muito interessante acerca disto no “Nascimento da Tragédia”, mas em vão tentei encontrar a passagem no livro. Talvez volte a este tópico noutro artigo].

A experiência da literatura é sempre mais pessoal. Ler um livro é um diálogo com o autor e com nós mesmos. Por mais que se partilhe e se encontre outros que partilhem a mesma fé, nunca equivale a gritar em plenos pulmões a letra de uma canção num concerto com milhares de pessoas.

ACABEI DE TER UMA IDEIA: CONCERTOS LITERÁRIOS! Um palco com alguém a coordenar e o público a ler ou recitar ao mesmo tempo um texto ou poema. Tipo missa, mas com palavras mais bonitas, menos culpa e sem pecado. Ora aí está, o meu tipo de culto!

Photo by Vishnu R Nair on Pexels.com

Podíamos começar com as belas palavras de Bernardo Soares no “Livro do Desassossego”:

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. 

[...]

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Como Bernardo Soares, estremeço se dizem bem. E tenho gravadas na memória “palavras inevitáveis” como as primeiras de Gabo em “Cem Anos de Solidão”, palavras de Murasaki Shikibu, de Pessoa, obviamente!, de Arundhati Roy e muitos outros.

Alicercei a minha fé em canções e poemas e os meus sacerdotes são músicos e escritores. Não preciso de missa ou água benta e tenho muitos livros sagrados em casa por onde escolher.

Photo by Secret Garden on Pexels.com

Portanto, não tenhas medo de ser ateu. Há todo um panteão novo à tua espera.

E podes começar a rezar com esta oração em forma de poema do “Poema de canção sobre a esperança” de Álvaro de Campos:

Dá-me lírios, lírios,

E rosas também.

Mas se não tens lírios

Nem rosas a dar-me,

Tem vontade ao menos

De me dar os lírios

E também as rosas.

Basta-me a vontade,

Que tens, se a tiveres,

De me dar os lírios

E as rosas também,

E terei os lírios —

Os melhores lírios —

E as melhores rosas

Sem receber nada.

A não ser a prenda

Da tua vontade

De me dares lírios

E rosas também.

E agora ide lá ouvir R.E.M. que devem tar com isso na cabeça desde o início do artigo!

1 Recentemente descobri que o líder do Chaga ia ouvir missa em latim quando era novo. Talvez a missa em latim não seja recomendável a todos. Vejam se têm antecedentes de racismo ou xenofobia, a missa em latim pode não ser para vocês!

2 Eu só conheço uma pessoa que não gosta de música e o universo vingou-se e deu-lhe dois filhos, um que toca bateria e o outro saxofone!

Um Nariz, um Capote & Outras Histórias

INTRODUÇÃO: Em que se explica porque é que o livro foi ostracizado. Antes de ler, ir ao vídeo no fim do texto e carregar no play. Saltar para depois da primeira imagem se causar aborrecimento.

Mais um livro ostracizado: uma edição de quatro contos de Nikolai Gogol em inglês.

Por norma evito traduções. Mas como não leio nem russo nem grego (mas domino todos os outros idiomas coff coff), às vezes há que lê-las. Não há outro remédio.

Mas quando leio traduções gosto de investigar primeiro a experiência do/a tradutor/a. E nunca leio (a não ser em caso de extrema necessidade) traduções para outra língua que não o português!

E por caso de extrema necessidade entenda-se 1) não haver tradução para português; 2) ser traduzido do original para outra língua primeiro e depois para português; 3) a tradução para português não ser boa.

Ora, com estas obras do Gogol que me vieram parar cá a casa, não se verificava nenhuma das ocorrências acima descritas (gostaram deste juridiquês? Estou a redigir o meu contrato de arrendamento enquanto escrevo este texto, por isso há influências cruzadas!). Mas o raio do livro estava em inglês.

Comecei a ler os primeiros contos “Old-Fashioned Farmers” e “The Tale of How Ivan Ivanovich Quarrelled with Ivan Nikiforovich” e empanquei neste último. Lembro-me de ter dificuldades em progredir no texto e de confundir os dois Ivans.

Até que voltei a tentar e adorei. Não sei o que se passa comigo, mas este “eu” do confinamento tá a desbastar livros duma maneira surreal!

Photo by Lisa Fotios on Pexels.com

Old-Fashioned Farmers

A história de um velho casal de agricultores que vivem apenas um para o outro, enquanto são roubados escandalosamente pelos trabalhadores da sua quinta. São completamente alheios às riquezas que os rodeiam e vivem apenas para cuidar um do outro e deliciarem-se (e aos seus hóspedes) com as iguarias que a mulher, Pulcheria Ivanovna Tovstogubikha prepara.

Uma das coisas que mais enriquece este simples conto são as inúmeras referências aos produtos da quinta e às iguarias com que se deliciam:

A fire was constantly laid under the apple-tree; and the kettle or the brass pan with preserves, jelly, marmelade – made with honey, with sugar, and I know not with what else – was hardly ever removed from the tripod.

…distilling vodka with peach-leaves, with wild cherry, cherry flowers, gentian, or cherry-stones in a copper still;

Photo by rome.dema on Pexels.com

What shall we have to eat now, Afanasii Ivanovich – some wheat and tallow cakes, or some pies with poppy seeds, or some salted mushrooms?

E há ainda referências a pratos ucranianos, como zakuska1, kutya2 e mnishki3. O conto é bonito mas nada de memorável.

The Tale of How Ivan Ivanovich Quarrelled with Ivan Nikiforovich

Foi neste conto que empanquei. Lembro-me de confundir os dois Ivans e de achar o conto aborrecido e desinteressante. Dez anos fastforward e a impressão foi muito diferente.

Ponto um: é bastante fácil distinguir os dois Ivans.

Ponto dois: O conto é bastante fácil de ler e há claramente um antes e um depois da quezília4 entre os dois Ivans. Antes são inseparáveis, praticamente unha e carne e um exemplo de amizade na sua Mirgorod natal. Depois da quezília, mal se podem ver à frente. Tornam-se conflituosos e a vida da cidade é para sempre afectada.

Sem contar spoilers digamos que se no conto anterior as personagens davam importância ao que realmente importa, os dois Ivans deixam que coisas insignificantes como o orgulho ou a teimosia destruam uma forte amizade.

O conto está recheado de humor. Principalmente no motivo da zanga. É uma boa forma de mostrar como, vistas de fora, há discussões ridículas e inúteis e que não vale a pena estragar uma boa amizade por causa de um ganso…!

The Nose

Photo by GEORGE DESIPRIS on Pexels.com

Ora aí está o conto que me fez gritar “GOGOL É INCRÍVEL”!

Nem de propósito este conto chegou até mim numa altura em que uma amiga minha foi operada ao….

(rufos)

…NARIZ!

O conto trata de um nariz que fugiu do seu lugar (na cara de uma pessoa, obviamente) e passeia-se agora pela cidade e, ainda para mais, vestido como um homem de estatuto superior ao do seu antigo dono!

Pensei imediatamente na minha amiga. E se o nariz dela, depois de ter sido recauchutado, quisesse fugir da cara dela? Não que houvesse nada de errado com a cara dela, obviamente. Mas simplesmente porque o nariz, já não é o mesmo nariz e já não quer viver naquela cara. Quer independência!

E se os nossos narizes quisessem dar um grito do Ipiranga? E depois? O que seria das nossas caras?

O nariz é muitas vezes ignorado. Só damos por ele ou quando pinga ou quando não funciona. Agora com o ataque do Covid ficamos todos ó tio ó tio se perdíamos o olfacto!

Eu percebi a importância do meu nariz quando vi uma amiga (que tem sinusite crónica) enfiar o dela na fralda do seu bebé para saber se estava na hora de a trocar. Bastava ter-me perguntado. A evidência era abundante e incontestável!

Gogol só veio reforçar a importância de tratarmos bem do nosso nariz. Não vá ele fartar-se e sair a correr pela cidade. E agora com máscara não se reconhece ninguém!

Não, não falei grande coisa do conto, mas se a história de um nariz que abandona uma cara não vos faz lê-lo, não sei o que fará!

The Overcoat

Um funcionário público tem um casaco a desfazer-se. Todos gozam com ele no serviço. Até que é preciso remendar o casaco mas o alfaiate diz ser impossível: é preciso fazer um casaco novo.

Akakii Akakievich faz grandes sacrifícios financeiros para conseguir pagar o casaco e finalmente consegue.

O casaco é lindo. E quente. E todos o admiram. Até que….

E vou parar por aqui.

É difícil falar do texto sem fazer spoilers!

Desde o início do conto que se tem a impressão que Akakii não é um homem de sorte. Pelo contrário. Ele parece uma pequena formiga prestes a ser esmagado quando menos esperar.

Tal como no “Nariz”, uma pequena coisa, neste caso o casaco, fazem toda a diferença. O casaco serve como símbolo de estatuto social mas também serve propósitos mais básicos (e mais importantes) como proteger do frio – o que, convenhamos, em S. Petersburgo é bastante importante!

Sem o casaco novo, a vida de Akakii é muito diferente, mas talvez não fosse tão má se os seus companheiros e chefes prestassem mais atenção a quem não tinha os seus privilégios.

Lição a retirar do conto: tratar bem toda a gente. Primeiro, por princípio. Segundo, porque traz bom karma. Porque eu não acredito em bruxas (ou fantasmas), pero que las hay las hay….!

4/5 para os dois primeiros contos e 5/5 para o Nariz e o Capote.

Fiquei com vontade de ler mais coisas de Gogol!

P.S. – Sugestão de leitura: ler a ouvir Shostakovich. Claro que a ópera “O Nariz” é a escolha óbvia, mas gostei mais de ouvir a Jazz Suite No.1:

1 zakuska: aperitivo servido antes do jantar que consiste em caviar, arenque, salmão fumado, sardinhas, ganso fumado, salsichas, pão de queijo, manteiga, vodka, etc.

2 kutya: prato servido em funerais, feito com bagos de trigo, sementes de papoila e mel. Também pode levar avelãs, frutos secos e passas. Podem ver uma kutya na série da RTP2 “257 razões para viver“.

3 mnishki: coalhada e farinha

4 quezília: descobri que vem do quimbundo kijila, «preceito» e resolvi partilhar!

Crepúsculo em Itália

Todos estes livros que estou a ler desde a “Casa Grande de Romarigães” são livros que já tinha tentado ler uma vez mas arrumei-os logo para canto.

No caso do “Crepúsculo em Itália” foi-me oferecido quando andava a ler os livros da colecção de literatura de viagem da Tinta da China. A minha amiga achou piada ao título por se passar em Itália. Aposto que imaginou pizzas e pasta e gelatto e la dolce vita.

Mamma mia, como estava enganada! O primeiro capítulo veio acabar com essas ilusões todas! D.H. Lawrence passa-o a descrever os crucifixos que encontra pelo caminho e a filosofar sobre os crucifixos e os homens que vivem naquelas paragens.

Detestei.

E eu que sempre quis ter lido “O Amante de Lady Chaterley” questionei seriamente se ler mais alguma coisa do D.H. Lawrence era uma opção.

Mas depois veio a pandemia. E dei mais uma oportunidade ao livro.

E voilá! Adorei.

Não só não achei o primeiro capítulo (o tal dos crucifixos) tão “secante” como fiquei completamente presa à prosa de Lawrence, principalmente em capítulos como o da “Fiandeira e os Monges” e “San Gaudenzio”:

…os ciprestes pairam como labaredas de escuridão esquecida que deviam ter sido apagadas no final do Verão.

(…)

O Inverno está a chegar ao fim, Nas montanhas, a neve feroz cintila, de um tom dourado de damasco, à medida que o final da tarde se aproxima, cor de ouro, cor de damasco, mas tão ofuscante que se torna quase assustadora.

Photo by Gianluca Grisenti on Pexels.com

O livro foi escrito durante a “lua de mel” de D.H. Lawrence e Frieda Weekley. Lawrence tinha rompido um noivado anterior quando ele e Frieda (que ainda era casada na altura) fugiram juntos. O par casar-se-ia três meses depois da fuga, apesar de Frieda continuar casada (o seu divórcio só chegaria passados dois anos).

Depois do casamento, os dois viajam “quase sem um tostão no bolso e percorrendo parte do caminho a pé, através dos Alpes, até à Áustria e Itália”.

Ele vai relatando episódios da viagem de ambos, embora sem nunca referir Frieda. A viagem inicia-se na Baviera, atravessa a Áustria, chega à Itália, onde se parta a maior parte do livro, e termina na Suíça.

Na parte italiana, descreve-nos um dos seus anfitriões, um padrone aristocrata que agora mal tem onde cair morto mas insiste em falar num francês enferrujado. Lawrence é, por vezes, incisivo nas suas críticas, ao passo que noutras deixa-se levar por generalizações. Como quando pensa ter desvendado no padrone que não podia ter filhos a explicação para a atracção que Itália supostamente exerce sobre nós: a adoração fálica. E depois discorre sobre como para o italiano o falo é o “símbolo da imortalidade criativa” e como as “raças setentrionais” não acreditam no falo…

Isto foi uma das razões que me fez pousar o livro da primeira vez: as excessivas divagações filosóficas. Mas desta vez até as recebi bem, talvez por esta pandemia toda nos ter feito pensar e repensar a vida. Agradeci que alguém estivesse a filosofar que não eu.

Mas bem mais interessante que as divagações (para mim) é uma das últimas passagens do capítulo do padrone:

Que vai ser do mundo? Londres e os condados industriais derramam-se como um negrume sobre toda a terra, horríveis, no fim de contas destrutivos. E o lago de Garda é tão belo sob o céu repleto de sol, ao ponto de se tornar insuportável.

(…)

o mundo irá cobrir-se de enormes ruínas, varrido por bizarros engenhos industriais, completamente morto, as pessoas desaparecidas, engolidas pelos derradeiros esforços para construir uma sociedade perfeita, altruísta.

Photo by Chris LeBoutillier on Pexels.com

Uma das preocupações de Lawrence que atravessa todo o livro é o desaparecimento das paisagens naturais pela excessiva industrialização. O empobrecimento da Itália rural parece adivinhar este futuro cinzento.

No capítulo seguinte ao do padrone, Lawrence segue para San Gaudenzio, onde fica hospedado com um casal de camponeses e os seus filhos. É uma zona pobre e muitos dos homens emigraram para os EUA à procura de melhores condições. Mas todos acabaram por voltar. Algo de muito forte os prende àquela terra seca e infértil, impedindo-os de serem felizes na América mas também não lhes dando grandes esperanças de felicidade em solo italiano.

No fim da viagem, o Autor faz uma incursão na Suiça onde encontra um grupo de italianos que fugiu do serviço militar obrigatório. E durante o seu breve encontro, enquanto os italianos ensaiam uma peça de teatro, forma-se uma forte ligação que Lawrence não consegue esquecer.

Este foi um dos momentos em que me senti mais próxima do Autor. Lembrei-me de pessoas que conheci em viagem, que se tornaram inseparáveis nesses dias, com quem partilhei experiências únicas e de quem, naqueles dias, me parecia impossível esquecer. Até que a viagem acaba, voltamos à nossa casa e aquelas pessoa já não nos fazem falta. Ou fazendo, já não sabemos como nos aproximar delas. A circunstância mudou.

Não sei porque assim era. Mas não fui capaz de lhes escrever, nem de pensar neles (…) E muitas, muitas vezes, a minha mente regressava ao grupo, à peça que eles estavam a ensaiar, ao vinho no café acolhedor, e àquela noite.

O livro é feito destes momentos, de impressões e sobretudo de sensações. O que mais impressiona é a sensualidade que impregna o texto. As descrições são bastante intensas – vemos as paisagens como se estivéssemos lá, ouvimos a música do baile, bebemos o vinho e comemos knoedels como se estivéssemos à mesa com ele na estalagem.

É uma viagem que podemos acompanhar como se nós mesmos a estivéssemos a viver. Ainda que não (re)conheçamos a paisagem ou os lugares por onde passa, podemos identificar-nos com as sensações descritas e com os sentimentos de Lawrence: os encontros, as primeiras impressões, o conforto de uma refeição quente depois de um dia frio e exaustivo, as generalizações que todos já fizemos sobre esta ou aquela terra…

Não esperem encontrar recomendações de “5 coisas a fazer no lago Garda” ou “3 armadilhas para turistas na Suiça”. Nada disso. E ainda bem.

Quem não quereria voltar a viajar sem saber o que vai encontrar? Sem conhecer de antemão as 5 coisas a ver naquele sítio, o que comer e onde dormir?

E no fim, dizer como Lawrence quando chega ao lago Como:

devia ser esplendoroso quando os Romanos ali chegaram. Agora, está repleto de villas. Creio que apenas o nascer do sol é ainda esplendoroso, em certos dias.

Photo by Pixabay on Pexels.com

Há alguma coisa mais actual que achar que tudo era melhor “antigamente”?

Eu cá acho que era melhor visitar o mundo antes do turismo de massas ou até bem antes. Como seria a Europa na Idade Média? Eu adorava ter estado lá nessa altura, mas provavelmente seria queimada como bruxa… Ou estar em Roma no séc. I a.C. no período do direito romano clássico? Mas se calhar também não era grande ideia ser mulher nessa altura…

Bem, se calhar não era mau de todo conseguir viajar em 2021…!

4/5 (repetitivo, eu sei, mas não é espectacular para uma 5/5 nem “blaa” para um 3)

Sugestão: ler o livro a ouvir a “Dolce Vita” do Jonas Kaufmann:

Ensaio sobre a curgete.

ESTE POST É O RESULTADO DE FALTA DE SOCIALIZAÇÃO CONTINUADA E PODE CAUSAR SENTIMENTOS DE ALIENAÇÃO OU ENFADO EXTREMO.

Sim, vou escrever sobre curgetes. Porque não? Estou há meses em quarentena e distanciamento social, isto começa a afectar a cabeça duma pessoa.. E têm visto as notícias ultimamente? Pra que é que hei-de falar de viagens e livros e do resto? Qual seria o objectivo?

Por isso vou falar de curgetes.

O meu interesse pelo tópico nasceu durante a última quarentena. “Interesse” talvez seja excessivo. Digamos que me deparei com a questão da existência da curgete enquanto estava fechada em casa. E isso incomodou-me.

Como quase todos os portugueses bombardeados nas redes sociais com anúncios de venda de cabazes de legumes online (bio e não bio), cedi e decidi mandar vir um cabaz de frutas e legumes.

O cabaz trazia diversos frutos e legumes e claro, uma curgete. A curgete tornou-se omnipresente na vida dos portugueses.

Enquanto era miúda nem me lembro de ouvir pronunciar o seu nome. (Também podia ser porque eu e os legumes só fizemos as pazes há cerca de 10 anos). Mas agora? Há courgettes, courgetes e curgetes em todo o lado.

O problema começa logo por ninguém saber como se escreve o raio do bicho. É com “ou”? Com dois “tt”?

O dicionário esclarece:

curgete, do francês "courgette": fruto pertencente à família das Cucurbitáceas, a que também pertencem as abóboras, de forma alongada, casca verde e polpa branca ou amarelada, que é colhido e consumido no início do seu desenvolvimento.

Mas voltemos ao cabaz. Fomos comendo tudo e a curgete ficou pro fim.

A minha inquietação com a curgete começou aqui. O que é que eu ia fazer com ela?

Lá decidimos usar a curgete numa tarte mas a tarte ficou bhlaaa. A culpa não era da tarte. Já a tínhamos feito milhões de vezes e fica sempre incrível.

A CULPA ERA DA CURGETE.

Photo by Angele J on Pexels.com

E aqui nasce a minha inquietação.

Porque é que a curgete existe? Já tínhamos a abóbora, o pepino, a cabaça, a melancia… Não me parece que existisse aqui um vacuum que a curgete tivesse de suprir.

E pra que é que ela serve?

Acho que a frase que mais ouço em 2021 quando se fala de sopa é “Ai eu ponho curgete em vez de batata na sopa”. Mas porquêêêêêêê? Que lobby da curgete é esse? E o que é que têm contra as batatas? [Desde que chegou à Europa a batata tem sido vilipendiada, mas bem, deixo isso para outro post. Tenho que tratar da curgete agora].

Ainda há dias a falar com a minha prima M. sobre sopa, ela vira-se e diz “eu ponho curgete na sopa porque eu ADOOROO curgete”. E eu pensei: mas quem és tu??!.

Desabafei com uma amiga e ela disse-me que adora curgete (mais uma na equipa curgete!). A L. contou-me que no Brasil fazem coisas incríveis com curgete. Saladas deliciosas e refogados e mais coisas que me esqueci por causa do meu preconceito contra a curgete.

Mas também, pensei eu, o Brasil não é exemplo. Eles pegam numa coisa banal e transformam-na num fenómeno: futebol, carnaval, as novelas…!

E, por outro lado, “curgete” no Brasil diz-se “abobrinha” e há mesmo uma expressão “falar abobrinha” que significa não dizer nada de jeito. Ora isso não prova o meu argumento? Se um povo que nos deu o quindim e o brigadeiro chama a curgete de abobrinha isso não quer dizer que nem para eles ela tem valor?

A minha cena com a curgete é que aquilo não sabe a NADA. NAADAAA.

O que é que a curgete traz a uma prato?

Sabor? Nope.

Aroma? Nope.

Textura? Nope.

É um fantasma culinário. Está ali mas é como se não estivesse.

Talvez a curgete seja um legume niilista. Ou apenas um vegetal sem metafísica.

E mesmo assim, talvez a curgete tenha em si todos os sonhos do mundo.*

Eu também tenho muitos sonhos. Mas se calhar agora só tenho mesmo é falta de sono.

Vou ali dormir um bocado e vocês deviam fazer o mesmo porque estão a ler sobre curgetes!

Bom domingo a todos!

*Viram o que é que eu fiz aqui? Se não viram, ide ler a “Tabacaria” do Álvaro de Campos.

The Souls of Black Folk

Primeira leitura não-ficção do ano!

Já tinha este livro desde o Natal de 2019 mas finalmente ganhei coragem para o acabar de ler e mesmo a tempo de celebrar o African American History Month!

The Souls of Black Folk, foi publicado em 1903 pelo sociólogo, historiador, poeta e activista dos direitos civis W.E.B. Du Bois. Du Bois licenciou-se na Universidade de Fisk e prosseguiu os seus estudos em Harvard, onde se viria a tornar no primeiro doutorado negro.

O autor retrata-nos as condições das populações afro americanas no início do século XX. E, mais de cem anos depois, só podemos pasmar ao ver o quanto o racismo e a desigualdade ainda permeiam a nossa sociedade.

O livro encontra-se dividido em dez capítulos, cada um iniciado por um trecho de uma “Sorrow Song” (ou Spiritual) relacionada com o texto.

They that walked in darkness sang songs in the olden days–Sorrow Songs–for they were weary at heart. And so before each thought that I have written in this book I have set a phrase, a haunting echo of these weird old songs in which the soul of the black slave spoke to men.

Os Spirituals tinham várias funções na cultura dos escravos: preservavam valores culturais, representavam uma forma significativa de expressão pessoal que transcendia as restrições da escravatura e os escravos cronometravam o seu trabalho de acordo com o tempo da música.

Ir para 21:30 para ouvir Spiritual

Comecemos pelo princípio:

Na introdução de Ibram X. Kendi uma citação salta à vista. É de Gomes Eanes de Zurara:

They lived like beasts, without any custom of reasonable beings

É da Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné. E sente-se um certo desconforto em ver uma referência a um português neste contexto. Vergonha. Sim, vergonha, talvez seja a palavra mais adequada.

E numa pequena frase, numa introdução dum livro escrito há mais de um século vemo-nos confrontados com o papel que os portugueses tiveram na colonização e na escravatura. Num livro que parecia não ter nada a ver connosco.

Se há uma coisa que a terrível morte de George Floyd possibilitou, foi que cada um olhasse para o seu umbigo e visse, pela primeira vez, o racismo dentro de portas. Costumamos olhar os EUA e fica pasmados com aquela história de escravatura e segregação, com a maneira como as políticas criminais permitiram perpetuar formas de escravatura e de descriminação e isso cega-nos para outras formas de racismo. Mais subtis. E que existem bem perto de nós.

Navio negreiro português “Diligente” capturado por H.M. Sloop Pearl com 600 escravos a bordo. Aguarela do Tenente inglês Henry Samuel Hawker, Smithsonian, National Museum of African American History and Culture

Du Bois começa por abordar o tratamento arbitrário dos escravos durante a Guerra Civil e dos primeiros passos que se tomaram, após a abolição da escravatura, para organizar e educar os ex-escravos. É notória a resistência dos estados do sul à ideia de um negro livre e educado:

…for the South believed an educated Negro to be a dangerous Negro. And the South was not wholly wrong; for education among all kinds of men always has had, and always will have, an element of danger and revolution, of dissatisfaction and discontent. Nevertheless, men strive to know.

O foco do livro é sobretudo a educação. Du Bois viu com os seus próprios olhos as parcas condições das escolas quando ensinou numa escola rural no Tennessee. E ele próprio, durante a sua experiência universitária em Fisk conheceu o sul intolerante de Jim Crow, da supressão dos eleitores negros (onde é que já ouvimos isto recentemente?) e dos linchamentos.

Thus, then and now, there stand in the South two separate worlds; and separate not simply in the higher realms of social intercourse, but also in church and school, on railways and street-car, in hotels and theatres, in streets and city sections, in books and newspapers, in asylums and jails, in hospitals and graveyards.

Placa do autocarro segregado n.º 351 de Nashville, National Museum of African American History and Culture

Mesmo após a abolição da escravatura, mantiveram-se outras formas de trabalho forçado. As prisões continuam a ser ocupadas maioritariamente por prisioneiros negros de cujo trabalho forçado beneficiam (ver documentário “13th” para aprofundar este ponto):

…the “stockade”, as the county prison is called; the white folks say it is ever full of black criminals, – the black folks say that only colored boys are sent to jail, and they not because they are guilty, but because the State needs criminals to eke out its income by its forced labor.

Du Bois viveu esta intolerância e desigualdade na pele. Num capítulo comovente intitulado “Of the passing of the first-born” o autor conta-nos a morte do seu primogénito. Depois do estado de saúde do menino se agravar, Du Bois não conseguiu encontrar os poucos médicos negros da cidade e os médicos brancos de Atlanta recusaram-se a atender um paciente negro. O menino morreu de difteria com apenas dois anos.

O livro incluiu ainda dois capítulos escritos posteriormente. Em “The Talented Tenth“, Du Bois ressalva a importância do ensino universitário na formação de uma elite afro americana e a importância dessa elite para liderar aqueles milhões de homens e mulheres que ainda há pouco tempo tinham sido libertados da escravatura.

No último capítulo, “The Souls of White Folk“, Du Bois reflecte sobre a colonização e a supremacia branca:

“But what on earth is whiteness that one should so desire it?”

(…)

Everything great, good, efficient, fair and honorable is “white”; everything mean, bad, blundering, cheating and dishonorable is “yellow”; a bad taste is “brown”; and the devil is “black”. The changes of this theme are continually rung in picture, in sermon and school-book, until, of course, the King can do no wrong, – a White Man is always right and a Black Man has no rights which a white man is bound to respect.

O quanto isto ainda é verdade é o mais assustador. É triste que um livro escrito em 1903 continue tão actual mais de um século depois e pelas piores razões.

Nota: 4/5

Seguem recomendações de conteúdos para quem quiser aprofundar o tema.

O óptimo National Museum of African American History and Culture tem imensos recursos e nele podem encontrar a fantástica Amanda Gorman a recitar o poema “Old Jim Crow Got To Go”:

Leituras: “To Kill a Mockinbird”, de Harper Lee; “The God of Small Things”, Arundhati Roy, “Ma Rainey’s Black Bottom”, August Wilson

Documentários: 13th

Activistas/páginas instagram: Rachel Cargle, The Great Unlearn, So You Want To Talk About, Black Book 2020, Stacey Abrams, Rupi Kaur, AfroMary

SOS Racismo

E estes são os que me ocorrem agora, se têm mais recomendações, por favor deixem nos comentários.

Obrigada!

A Casa Grande de Romarigães

Onde se fala do Minho, de fidalgos, de palavras esquecidas e de outras que não devemos esquecer, como escravatura.
Primeira leitura do ano!

Finalmente! Dez anos depois acabei este livro!!! Nunca tinha passado das 10 páginas iniciais. E sim, não foi fácil. Mas há males que vêm por bem e não há melhor desculpa para pegar no dicionário que ficar fechada em casa.

O vocabulário é, sem dúvida, um dos entraves a uma leitura fácil desta obra. Aquilino Ribeiro descreve tudo com minúcia e usa tanto vocabulário erudito como mais popular. O problema é que a evolução da língua foi fatal para ambos. Palavras como zagal, laparoto, sabujo, molosso, alexifármaco, etc. há muito que não fazem parte do vocabulário português actual. E para avançar na leitura, só mesmo de dicionário ao lado!

Mas o vocabulário é também a grande riqueza deste livro. Através dele mergulhamos numa verdadeira viagem no tempo e vivemos de perto a riqueza e generosidade do Minho em todo o seu esplendor. Há belíssimas descrições dos prados:

Manadas de vacas, de úberos retesos, mugindo amaviosas quando mamãs recentes, de galhadura em lira, mais esbeltas que duas estrofes de Diogo Bernardes, vizinho das terras do Lima, davam ameneidade bíblica ao verde anojadiço das veigas. As ovelhas baliam nos rossios, e era patusco ver os poldros novos despedir em carreiras vertiginosas pelos cerros e estacar cerce como o cavalo de Fuas Roupinho nas arribas da Nazaré.

Postal do Minho – edições Lusocolor

Da dieta dos abades:

Dois abades estiveram às portas da morte, fulminados de congestão. O P.e Mourinha desforrou-se nas almôndegas da dieta hídrica que aguentara no Seminário de Braga, dieta essa que contribuíra para lhe escangalhar a máquina, de colaboração com as rijas pançadas de broa rural rilhadas a paroquiar Corno de Bico.

Ao centro, estava o Cordeiro Pascal, pintado tão ao vivo que fazia crescer água na boca como se acabasse de chegar na espadela, tostadinho do forno.

Da vida das beatas:

As beatas saíram da igreja de Nossa Senhora a Branca isoladas e aos magotes, rosários ao pendurão, de nariz no ar, investigando do que teria acontecido na praça enquanto elas encomendavam a alma e o mundo a Deus Nosso Senhor.

E, por todo o livro, há um tom de humor e ironia que põe à vista as vidas menos santas dos fidalgos:

Photo by Dmitry Demidov on Pexels.com

Embora de cerca, era uma porta conventual, reforçada, como todas as portas conventuais, de molde a resistir aos três inimigos temíveis: mundo, diabo e carne.

Há também interessantes divagações sobre os democráticos ataques do percevejo, tão comum no hostel hodierno como no solar de antigamente:

“É certo que os percevejos numa casa nobre, do tempo de D. Tareja, são tão infalíveis e decorativos como as adagas numa panóplia. Fazem parte da tradição. Andam ligados às vicissitudes da progénie e poderiam testemunhar dos brincos de alcova. À sua hora eles lá vêm capciosos e sorrateiros com todas as ventosas prontas a chupar o sangue visigótico. Se topam com um vilão, frigem-no. Aqueles da linhagem dos Tresmondes eram particularmente densos e carnífices. Lançaram-se sobre Luís de Azevedo por miríades, e quando se apercebeu, estava submerso, mais cravejado de assaltantes que de estrelas a Via Láctea.”

Estas pérolas por si só já formariam uma bela jóia, mas a acrescentar-lhes ainda temos as aventuras e desventuras dos fidalgos da Casa Grande, desde o licenciado Gonçalo da Cunha a Telmo Montenegro. Atravessamos a história de Portugal, desde o domínio filipino até ao fim do séc. XIX, passando pela restauração da independência, invasões francesas e guerras liberais. Observa-se a vida dos fidalgos e dos camponeses, de ladrões e abades. E lá pelo meio há menção de escravos a trabalharem nas quintas do Minho.

Admito que possa ter deixado passar referências semelhantes noutras obras de literatura portuguesa. Numa altura em que não estava tão atenta a estas questões. Mas não tenho ideia nenhuma de alguma vez ter lido sobre escravos negros a trabalharem em Portugal. A ideia com que se fica das aulas de história (e perdoem-me os meus professores se a minha memória me falha) é que a escravatura foi algo que aconteceu longe: em Angola, Moçambique, no Brasil…

Por isso soam estranhas as referências de Aquilino aos escravos que trabalham na quinta, à compra e venda de escravos pelos fidalgos como se fossem mais uma alfaia agrícola. E ao mesmo tempo faz-me perguntar “mas espera lá, como é que eu nunca li isto antes?”

Fiz uma pequena pesquisa sobre o tópico e não há muita matéria sobre o assunto. Os 40 anos de ditadura não favoreceram em nada a investigação – as poucas teses que havia serviam para negar mais do que para estudar a fundo o assunto. Creio que é mais do que altura para se investigar.

Chafariz d’el Rey, anónimo. Colecção Berardo

Passámos demasiado tempo a dar pouca importância ao assunto e ao nosso contributo para esse flagelo. Ou então a dizer (como se fosse desculpa) que fomos os primeiros a acabar com a escravatura – quando na realidade em 1761 acabou-se apenas com o comércio de escravos em Portugal continental e a escravatura continuou nas colónias (e também na metrópole, apesar do decreto).

E nem de propósito, o próximo livro na lista é “The Souls of Black Folk” de W. E. B. Du Bois.

Quanto à Casa Grande, recomendo muito, se tiverem tempo para lhe dedicar. Creio que se perde muito se se tentar adivinhar o significado das palavras pelo contexto (dei muitos tiros ao lado!) sem consultar o dicionário. Mas com tempo é uma viagem incrível pelo Minho de outros tempos. E há melhor nesta altura?

4/5

Significados:

  • zagal = pastor
  • laparoto = coelho adulto
  • sabujo = cão de montaria
  • molosso = cão de fila
  • alexifármaco = antídoto

Porque é que os livros bons acabam mal?

Desde que aprendi a ler que tenho lido muita coisa.

Comecei com os contos infantis, depois “Uma Aventura”, “Triângulo Jota”, literatura “infanto/juvenil” e por aí fora até ao livro mais recente (“Tess of the D’Urberville”).

Já li uma catrefada valente de coisas. Boas e más. Acho que com certeza, muito mais boas que más. Mas nos últimos tempos, principalmente nas minhas leituras de quarentena tenho chegado a uma conclusão assustadora: os melhores livros, isto é, aqueles que na minha humilde opinião são os mais bem escritos, acabam, na maior parte das vezes, mal.

Fazendo um pequeno balanço do que li em 2020:

[podes saltar se não queres ler a lista de alguém que anda com muito tempo livre]

  • A River Runs Again” – o.k., o ano até começou bem, um livro sobre projectos ambientais na Índia traz uma nota de esperança, parece que nem tudo está perdido;
  • The God of Small Things” – primeiro murro no estômago do ano: livro belíssimo, incrivelmente bem escrito e que nos deixa à beira dum desgosto amoroso eterno;
  • Midnight’s Children” – período da “emergência” na Índia, definitivamente não era a melhor altura para viver na Índia. Já dava pra ver que 2020 ia ser especial;
  • Heat and Dust” – a história acaba bem, o livro é mau;
  • O Ministério da Felicidade Suprema” – o título engana, Arundhati Roy (a autora) sabe como contar histórias de amor maravilhosas enquanto mostra como o mundo é cruel e destrói essas histórias em meia dúzia de capítulos;
  • The Colour of Magic”/”Light Fantastic” – graças a deus pela fantasia para dar um bocado de esperança, ainda que seja num planeta em forma de disco em cima de 4 paquidermes em cima de uma tartaruga (ver logo do blog para maior clareza);
  • Épico de Gilgames” – obra mais antiga recuperada da humanidade, não está mau e ninguém espera que um épico acabe muito bem – deuses e humanos, a modos que nunca acaba bem pro nosso lado, né?;
  • *Os Lusíadas” – é preciso comentar sobre os resultados da colonização??!!:
  • As Mil e Uma Noites” – só li o primeiro volume e Sheharazade continua viva. Nota positiva;
  • Romance do Genji” – acaba mal, mas Murasaki escreve tão bem que a única tragédia é aqueles japoneses terem-se perdido para sempre;
  • Cândido ou o Optimismo” – como o melhoral: nem está bom nem está mal;
  • Ficciones” – arruinou o meu cérebro tal como o conhecia, está a recuperar desde Junho;
  • East, West” – Salman Rushdie não escreve propriamente “feel good books”;
  • The Interpreter of Maladies” – vida de emigrante não é fácil;
  • Death and the King’s Horseman” – mais uma vez colonização…;
  • O Meu Nome é Vermelho” – nhaaa;
  • A Vida Mentirosa dos Adultos” – acaba bem acho eu…!;
  • Tess of the D’Urberville“, estou frustrada até hoje, apetece-me bater na Tess e no Thomas Hardy e em todos os idiotas que lixam a vida da Tess no livro e que acham que “a negative is only the preface of an affirmative“.

E isto é só uma amostra.

Sempre que penso em livros bons, que me ficaram na memória, raramente são histórias felizes: “O Auto dos Danados”, “Manual dos Inquisidores”, “Ensaio sobre a Cegueira”, “The English Patient”… Eça acho que não consegue recuperar do drama dos “Maias” no resto da obra! Ok, Luís Sepúlveda oferece-nos alguma salvação… De memória só a obra de Jane Austen e o “Jane Eyre” se escapam. E a obra de Umberto Eco talvez… E ainda não li muitos autores russos, mas receio que não venha muito folguedo daqueles lados…!

Imagino que haja um certo cliché no “e viveram felizes para sempre” que os bons escritores tendem a evitar.

Nem de propósito, enquanto estava a escrever este post vi esta citação:

The negative just makes for a better story: the plane was delayed, an infection set in, outlaws arrived and reduced the schoolhouse to ashes. Happiness is harder to put in words.”

David Sedaris

E, sim, parece-me lógico. Mas não podem limitar-se a usar a tristeza para desenvolver a história? Mas depois, lá pro fim, pôr um bocado de Betadine e dar um beijinho na ferida? Deus sabe como precisamos de um beijinho na ferida de 2020! E a julgar por este começo, em 2021 também!

Eu não peço que todos os livros acabem com Elizabeth Bennet e Mr. Darcy casadinhos de fresco, mas podem fazer com que nos apeteça viver mais um bocado?

Para as pessoas que dependem da literatura como Xanax, o que é que fazemos agora?! Leio o jornal? COVID/VACINAS/ANTI-VACINAS/ETC. Cinema? O último filme que vi foi o “Listen”… também não tamos num mood “feel good”. Música? Ok, há esperança.. mas eu sei que vou sempre precisar de bons livros. Por isso:

Alguém que esteja a ler isto e esteja a pensar em escrever um livro, por favor, lembre-se de nós, os leitores que precisam de um bocadinho de esperança em forma de linhas de texto:

E ESCREVA UM LIVRO BOM COM UM FINAL FELIZ.

OBRIGADA.

Eu vou tratar de escrever um ano com um final feliz.

“O Romance do Genji”, Murasaki Shikibu

ESTE POST É SOBRE UM LIVRO QUE EU NÃO FAZIA IDEIA QUE EXISTIA E PORQUE É QUE TODA A GENTE DEVIA LÊ-LO

Eu não fazia ideia que este livro existia.

As únicas coisas que tinha lido de autores japoneses foram o “Hagakure”, uma espécie de manual do samurai, a “Crónica do Pássaro de Corda” do Murakami (que, honestamente, não percebo) e recentemente ouvi falar de Mieko Kawakami mas ainda não li nada dela.

Graças ao curso sobre “Obras primas da literatura mundial” do edx descobri esta pérola e foi uma viagem no espaço (daquelas que por enquanto não podemos fazer) e no tempo (das que os livros e a imaginação sempre proporcionaram).

Sem sair da minha casinha viajei até ao Japão do séc. XI. E que viagem!


Kiritsubo, from the series Lingering Sentiments of a Late Collection of Genji https://collections.mfa.org/objects/190314/ch-1-kiritsubo-from-the-series-lingering-sentiments-of-a?ctx=9c25fb67-a9d3-4ccb-b3fd-63e850f55ec1&idx=5

O Japão antes dos shogun

Entre 794 e 1185 o Japão viveu aquele que foi considerado o seu período áureo, a era Heian. Um período de quatro séculos de paz até à consolidação da lei marcial (1185), que por sua vez, inaugurou a era dos senhores da guerra, dos shogun e que é talvez o período mais conhecido da história do Japão.

Durante estes quatro séculos, a cultura japonesa floresceu.

Baseando inicialmente o seu sistema de escrita nos caracteres chineses (kanji), os japoneses foram adaptando a pronúncia dos kanji de modo a poderem pronunciar os seus próprios sons e depois a escrita, de modo a poderem exprimir pensamentos e ideias que não cabiam nos caracteres chineses.

Com o desenvolvimento da escrita, a literatura conheceu o seu apogeu no séc. X. e desenvolveu-se uma forma poética original, o waka, poema de trinta e uma sílabas, usado pelos homens e mulheres deste período para exprimirem os seus pensamentos e emoções mais íntimos.

Exemplo de um waka do Genji:

"A bela imagem 
Da cerejeira dos montes 
Não deixa o meu espírito 
Embora lá tenha deixado 
Todo o meu coração" 

A autora

Neste cenário, uma escritora da corte de Michinaga, escreveu o Genji Monogatari (“O romance do Genji”). O seu nome chegou-nos até hoje como “Murasaki Shikibu” mas esse era um dos cognomes atribuídos às damas de honor da corte imperial e não o seu nome verdadeiro.

De Murasaki sabe-se que viveu entre 973/978 e 1014/1031. Aprendeu a ler e escrever chinês graças ao preceptor do seu irmão – escutava as lições clandestinamente pois não era suposto as mulheres saberem falar chinês.

Casou com Fujiwara no Nobutaka, que a introduz na corte como preceptora da Princesa Akiko e graças ao seu talento, rapidamente se tornou na figura central de um círculo literário feminino.

Murasaki Shikibu, from an untitled series of female poets https://collections.mfa.org/objects/233977/murasaki-shikibu-from-an-untitled-series-of-female-poets?ctx=21626d01-b1ab-4a1d-951a-212ddb0162a5&idx=142

A corte do Genji

A corte desta altura era um local privilegiado a cultura e para a arte. A literatura, a pintura, a caligrafia, a poesia preenchiam os tempos ociosos dos nobres. Era comum um homem apaixonar-se pela caligrafia de uma mulher antes mesmo de a conhecer e uma má caligrafia era tão má como um defeito físico!

Além de ter uma óptima caligrafia, esperava-se que um nobre fosse capaz de improvisar poesia. Por todo o Genji, há exemplos de verdadeiras “batalhas” de poesia, em que se espera que o interlocutor compreenda as referências do poema (a situações ou a outros poemas) e seja capaz de responder à altura.

Não ser capaz de responder com um poema de qualidade, especialmente numa situação de conquista amorosa, é uma desilusão para o interessado!

O Genji

Genji and Young Murasaki at Ueno (Ueno, Genji Wakamurasaki): Actor Sawamura Tosshô I as Genji https://collections.mfa.org/objects/214253/genji-and-young-murasaki-at-ueno-ueno-genji-wakamurasaki?ctx=71a5799f-8756-4ddb-bae1-09887d398207&idx=103

O Genji (=”príncipe”) é filho do Imperador e de Kiritsubo (sua concubina).

Kiritsubo, dado a preferência que o Imperador lhe atribui sobre todas as outras damas da corte, rapidamente atrai os rancores de todas elas e morre quando Genji tem apenas três anos. (Morrer pelo ódio é um tema recorrente do romance).

Genji cresce na corte sob a protecção do Imperador. Excepcionalmente belo e dotado, capaz de compor versos admiráveis e escrevê-los numa caligrafia igualmente magnífica, todos o admiram e as conquistas amorosas sucedem-se.

A corte japonesa destes tempos é um mundo em que as relações amorosas são apenas do interesse dos intervenientes. Pode-se dormir com quem se quiser (incluindo a própria madrasta) desde que não se ofenda a hierarquia vigente (o que trará alguns dissabores ao Genji!).

Sucedem-se os amores e os affaires, pontuados com muita poesia, entrecortada por paredes de papel e auroras (e intrusos) que surpreendem os amantes.

As referências às estações do ano e à natureza são omnipresentes. Às flores típicas de cada estação do ano, ao orvalho, aos animais e às cores. (Em cada estação do ano deviam vestir-se determinadas de cores).

Estranhamente fica-se com a sensação de que tudo o que acontece, acontece suavemente, com grande delicadeza, sem grande alvoroço. E não é porque haja falta de acção.

Tudo se deve à poesia e à beleza da prosa de Murasaki, que conferem um véu diáfano que cobre todo o sofrimento e o embelezam ao ponto de se esquecer a dor e restar apenas a perfeição das palavras.

Conclusão:

5/5 *****

e ainda só li o primeiro volume. Quando souber o que acontece ao Genji volto para vos contar.

Até lá façam viagens pelos livros, pode ser que apareçam ideias de belas viagens para se fazerem fora deles!

The Colour of Magic, Terry Pratchett

DESCOBRIR DISCWORLD 10 ANOS DEPOIS DE TER LIDO O PRIMEIRO LIVRO

Terry Pratchett

Descobri Terry Pratchett há muitos anos. Não me lembro como ou quem me falou dele. Comecei a ler o primeiro livro da colectânea do Discworld e… não percebi grande coisa.

Ao reler o livro e ver as palavras sublinhadas e traduzidas percebi que (graças a deus!) o meu inglês evoluiu muito nestes anos. E percebi porque é que não li mais nada de Discworld depois disso. Sem perceber os puns (trocadilhos) e as piadas, não se apanha grande coisa do livro.

Pelo meio li o “Good Omens“, que é muito mais fácil de ler e muito divertido! E ficou o bichinho para retomar a epopeia do Discworld.

Voltei a ler Terry Pratchett porque li um artigo sobre ele na Penguin em que falavam num livro chamado “Carpet People” (literalmente, O Povo da Carpete) e só a sinopse era incrível! De repente, lembrei-me de todo o absurdo que era o mundo de Discworld, do próprio planeta em si que não faz sentido nenhum e da mala com pernas e do Rincewind (um feiticeiro que não é lá muito bom com feitiços) e deu-me vontade de fugir da minha realidade confinada e ansiosa e mergulhar nesse universo.

Foi uma escolha acertada.

The Colour of Magic, propriamente dito

Terry Pratchett sabe contar histórias e cria coisas disparatadas como ninguém.

Tudo começa quando Twoflower, um turista do continente Counterweight visita Ankh Morpork para conhecer os seus heróis e malfeitores e viver, ele próprio, muitas aventuras. Twoflower é um técnico de seguros que se faz acompanhar por uma mala com pernas e cheia de moedas de ouro. O turista é completamente alheio ao perigo e a muitas outras coisas (sarcasmo, taxas de câmbio, por exemplo!) e mal repara que está a ser levado para uma ratoeira no Broken Drum, uma taverna frequentada pela pior gentalha de Ankh Morpork.

Aí conhece Rincewind e contrata-o como guia. Entretanto, Rincewind é chamado pelo Patrício da cidade e incumbido de proteger Twoflower durante a sua estada em Morpork, para que este chegue são e salvo à sua terra natal e assim manter as boas relações diplomáticas entre as duas cidades. Alguns segundos mais tarde, o Patrício recebe ordens para matar Twoflower… e que comece a aventura!

Há dragões que só existem se acreditarmos neles, uma Morte com sentido de humor, que rouba 1/9 de vidas aos gatos, octarina (a cor da magia) que é basicamente uma espécie de amarelo-púrpura esverdeado fluorescente, heróis de poucas palavras e o resto deixo para descobrirem.

“spell books leak magic. Various solutions have been tried. Countries near the Rim simply loaded down the books of dead mages with leaden pentalphas and threw them over the Edge. Near the Hub less satisfactory alternatives were available. Inserting the offending books in canisters of negatively polarized octiron and sinking them in fathomless depths of the sea was one (burial in deep caves on land was earlier ruled out after some districts complained of walking trees and five-headed cats) but before long the magic seeped out and eventually fishermen complained of shoals of invisible fish or psychic clams”

The Colour of Magic, Terry Pratchett

Nada melhor do que uma imaginação fértil para restaurar a fé na humanidade e no poder que uma mente tem, ainda que fechada em casa, de viajar por mundos fantásticos.