Todos estes livros que estou a ler desde a “Casa Grande de Romarigães” são livros que já tinha tentado ler uma vez mas arrumei-os logo para canto.
No caso do “Crepúsculo em Itália” foi-me oferecido quando andava a ler os livros da colecção de literatura de viagem da Tinta da China. A minha amiga achou piada ao título por se passar em Itália. Aposto que imaginou pizzas e pasta e gelatto e la dolce vita.
Mamma mia, como estava enganada! O primeiro capítulo veio acabar com essas ilusões todas! D.H. Lawrence passa-o a descrever os crucifixos que encontra pelo caminho e a filosofar sobre os crucifixos e os homens que vivem naquelas paragens.
Detestei.
E eu que sempre quis ter lido “O Amante de Lady Chaterley” questionei seriamente se ler mais alguma coisa do D.H. Lawrence era uma opção.
Mas depois veio a pandemia. E dei mais uma oportunidade ao livro.
E voilá! Adorei.
Não só não achei o primeiro capítulo (o tal dos crucifixos) tão “secante” como fiquei completamente presa à prosa de Lawrence, principalmente em capítulos como o da “Fiandeira e os Monges” e “San Gaudenzio”:
…os ciprestes pairam como labaredas de escuridão esquecida que deviam ter sido apagadas no final do Verão.
(…)
O Inverno está a chegar ao fim, Nas montanhas, a neve feroz cintila, de um tom dourado de damasco, à medida que o final da tarde se aproxima, cor de ouro, cor de damasco, mas tão ofuscante que se torna quase assustadora.

O livro foi escrito durante a “lua de mel” de D.H. Lawrence e Frieda Weekley. Lawrence tinha rompido um noivado anterior quando ele e Frieda (que ainda era casada na altura) fugiram juntos. O par casar-se-ia três meses depois da fuga, apesar de Frieda continuar casada (o seu divórcio só chegaria passados dois anos).
Depois do casamento, os dois viajam “quase sem um tostão no bolso e percorrendo parte do caminho a pé, através dos Alpes, até à Áustria e Itália”.
Ele vai relatando episódios da viagem de ambos, embora sem nunca referir Frieda. A viagem inicia-se na Baviera, atravessa a Áustria, chega à Itália, onde se parta a maior parte do livro, e termina na Suíça.
Na parte italiana, descreve-nos um dos seus anfitriões, um padrone aristocrata que agora mal tem onde cair morto mas insiste em falar num francês enferrujado. Lawrence é, por vezes, incisivo nas suas críticas, ao passo que noutras deixa-se levar por generalizações. Como quando pensa ter desvendado no padrone que não podia ter filhos a explicação para a atracção que Itália supostamente exerce sobre nós: a adoração fálica. E depois discorre sobre como para o italiano o falo é o “símbolo da imortalidade criativa” e como as “raças setentrionais” não acreditam no falo…
Isto foi uma das razões que me fez pousar o livro da primeira vez: as excessivas divagações filosóficas. Mas desta vez até as recebi bem, talvez por esta pandemia toda nos ter feito pensar e repensar a vida. Agradeci que alguém estivesse a filosofar que não eu.
Mas bem mais interessante que as divagações (para mim) é uma das últimas passagens do capítulo do padrone:
Que vai ser do mundo? Londres e os condados industriais derramam-se como um negrume sobre toda a terra, horríveis, no fim de contas destrutivos. E o lago de Garda é tão belo sob o céu repleto de sol, ao ponto de se tornar insuportável.
(…)
o mundo irá cobrir-se de enormes ruínas, varrido por bizarros engenhos industriais, completamente morto, as pessoas desaparecidas, engolidas pelos derradeiros esforços para construir uma sociedade perfeita, altruísta.

Uma das preocupações de Lawrence que atravessa todo o livro é o desaparecimento das paisagens naturais pela excessiva industrialização. O empobrecimento da Itália rural parece adivinhar este futuro cinzento.
No capítulo seguinte ao do padrone, Lawrence segue para San Gaudenzio, onde fica hospedado com um casal de camponeses e os seus filhos. É uma zona pobre e muitos dos homens emigraram para os EUA à procura de melhores condições. Mas todos acabaram por voltar. Algo de muito forte os prende àquela terra seca e infértil, impedindo-os de serem felizes na América mas também não lhes dando grandes esperanças de felicidade em solo italiano.
No fim da viagem, o Autor faz uma incursão na Suiça onde encontra um grupo de italianos que fugiu do serviço militar obrigatório. E durante o seu breve encontro, enquanto os italianos ensaiam uma peça de teatro, forma-se uma forte ligação que Lawrence não consegue esquecer.
Este foi um dos momentos em que me senti mais próxima do Autor. Lembrei-me de pessoas que conheci em viagem, que se tornaram inseparáveis nesses dias, com quem partilhei experiências únicas e de quem, naqueles dias, me parecia impossível esquecer. Até que a viagem acaba, voltamos à nossa casa e aquelas pessoa já não nos fazem falta. Ou fazendo, já não sabemos como nos aproximar delas. A circunstância mudou.
Não sei porque assim era. Mas não fui capaz de lhes escrever, nem de pensar neles (…) E muitas, muitas vezes, a minha mente regressava ao grupo, à peça que eles estavam a ensaiar, ao vinho no café acolhedor, e àquela noite.
O livro é feito destes momentos, de impressões e sobretudo de sensações. O que mais impressiona é a sensualidade que impregna o texto. As descrições são bastante intensas – vemos as paisagens como se estivéssemos lá, ouvimos a música do baile, bebemos o vinho e comemos knoedels como se estivéssemos à mesa com ele na estalagem.
É uma viagem que podemos acompanhar como se nós mesmos a estivéssemos a viver. Ainda que não (re)conheçamos a paisagem ou os lugares por onde passa, podemos identificar-nos com as sensações descritas e com os sentimentos de Lawrence: os encontros, as primeiras impressões, o conforto de uma refeição quente depois de um dia frio e exaustivo, as generalizações que todos já fizemos sobre esta ou aquela terra…
Não esperem encontrar recomendações de “5 coisas a fazer no lago Garda” ou “3 armadilhas para turistas na Suiça”. Nada disso. E ainda bem.
Quem não quereria voltar a viajar sem saber o que vai encontrar? Sem conhecer de antemão as 5 coisas a ver naquele sítio, o que comer e onde dormir?
E no fim, dizer como Lawrence quando chega ao lago Como:
devia ser esplendoroso quando os Romanos ali chegaram. Agora, está repleto de villas. Creio que apenas o nascer do sol é ainda esplendoroso, em certos dias.

Há alguma coisa mais actual que achar que tudo era melhor “antigamente”?
Eu cá acho que era melhor visitar o mundo antes do turismo de massas ou até bem antes. Como seria a Europa na Idade Média? Eu adorava ter estado lá nessa altura, mas provavelmente seria queimada como bruxa… Ou estar em Roma no séc. I a.C. no período do direito romano clássico? Mas se calhar também não era grande ideia ser mulher nessa altura…
Bem, se calhar não era mau de todo conseguir viajar em 2021…!
4/5 (repetitivo, eu sei, mas não é espectacular para uma 5/5 nem “blaa” para um 3)
Sugestão: ler o livro a ouvir a “Dolce Vita” do Jonas Kaufmann: